DEPRESSÃO : O MAL INVISÍVEL - 1

Imagine uma doença tão disseminada que afeta 340 milhões de pessoas em todo o mundo. Imagine que o distúrbio é tão desabilitante que reduz a produtividade profissional dos pacientes em 10% ao longo da vida (só nos Estados Unidos, estima-se que seus custos sociais estejam próximos de US$ 85 bilhões ao ano). Imagine que esse problema traz graus tão perturbadores de autodepreciação, apatia, isolamento social, distúrbios de sono e sentimentos de culpa que leva anualmente a 800 mil casos de suicídio. Agora imagine que, para a maioria dos portadores dessa patologia, o sofrimento não sai dessa esfera - a imaginação. Ninguém vê. Nem mesmo os médicos.

Apesar disso, o número de pessoas sofrendo de depressão dobrou nos últimos 50 anos, deixando cientistas preocupados e se perguntando por quê. O curioso é que nossas vidas, nesse período, melhoraram drasticamente. Hoje, comemos melhor, trabalhamos menos horas diárias, gozamos de mais saúde, tiramos férias mais longas e temos um poder de compra incomparavelmente maior. Ainda assim, a previsão é de que, em algum momento, um a cada cinco de nós venha a ter depressão.

Com tantos avanços, como se explica o aumento? Um dos palpites é que essas melhorias acabaram por afetar drasticamente o nosso modo de vida. A existência de facilidades que satisfazem todas as nossas necessidades, por exemplo, nos afastou do sol. A luz solar, sabe-se, estimula a produção de serotonina, o combustível do prazer no corpo humano. Jovens e idosos, nos pólos ou nos trópicos, tornaram-se sedentários, passando a ficar a maior parte do tempo em locais fechados. Outra explicação é a ausência de tratamento adequado. Com a expectativa de vida cada vez maior, pacientes de depressão estão também sujeitos a um maior número de recidivas. A falta de atenção só deixa o fantasma do problema cada vez maior.

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Os sintomas mais comuns
1. Sentir tristeza ou paralisação
2. Chorar facilmente ou sem motivo
3. Perder o interesse/prazer pelas coisas
4. Sentir-se culpado, sem saída ou sem valor
5. Pensar em morte/suicídio
6. Dormir demais ou não conseguir dormir
7. Perder apetite e peso ou comer demais e engordar
8. Sentir-se cansado e lento ou inquieto e irritável
9. Achar difícil se concentrar e tomar decisões
10. Ter dores que não melhoram com tratamento
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A depressão é um quadro clínico que passa batido pela maioria dos médicos. Muitas doenças podem simplesmente ser reflexos da depressão, que costuma ser reduzida a "tristeza". Mas esse transtorno do humor apresenta tanto sintomas emocionais como físicos e é preciso conhecer melhor o problema para evitar a epidemia que já se desenha - hoje, 10% da população mundial sofre do mal. Em dez anos, acredita-se que esse número será de 20%.

Recentemente, a Organização Mundial da Saúde classificou a depressão como uma das doenças que mais causam incapacidade. É a quarta, em uma lista de cinco. Até 2020 terá ocupado um pouco honroso segundo posto (veja quadro ao lado). No Brasil, hoje, 15,6% da população já é afetada pelo problema. E, ao contrário do que muita gente acredita, o transtorno não é privilégio de quem vive no ritmo intenso das grandes cidades. Estudos realizados na zona urbana de São Paulo e na pequena comunidade de Bambuí (MG) mostraram a mesma prevalência de depressão, com os mesmíssimos sintomas.

Despreparo

O maior problema, apontam os especialistas, está no próprio atendimento recebido por quem sofre da doença. "Os serviços de saúde primária não dão tratamento adequado aos casos e, na maioria das vezes, nem mesmo chegam a diagnosticá-los", diz Pedro Delgado, professor de psiquiatria e presidente da área na universidade americana Case Western Reserve. "Isso ocorre porque os médicos não abordam problemas emocionais, não fazem perguntas sobre apatia. Os sintomas da depressão não são apenas os óbvios e em geral os sintomas físicos, psicossomáticos, são negligenciados, acabam tratados isoladamente."

Para Delgado e outros psiquiatras líderes de vários países, que em 2004 realizaram um ciclo de debates sobre as barreiras ao tratamento eficaz da doença, falta preparo adequado dos dois lados. Primeiro, nas faculdades de medicina, que não dão embasamento suficiente em psiquiatria para profissionais que não se especializam na área. Segundo, entre a própria população. "A depressão ainda é vista como uma fraqueza, uma fase temporária, e não como uma condição clínica real. Ao contrário de uma enfermidade que ataca o braço, a depressão afeta no paciente o sentido de si mesmo. Isso provoca medo e insegurança. O próprio paciente reluta em informar os sintomas ao médico", critica.

A falta de conhecimento sobre as dimensões do problema tem um custo alto. Além da despesa bilionária que representa aos cofres públicos, entre gastos com reabilitação e redução de produtividade, a depressão é responsável pelo aumento do risco de suicídio. Nos Estados Unidos, morre-se mais por suicídio do que por assassinato. Na Europa, onde a taxa de deprimidos já atinge 25%, o índice é 15% maior do que o de mortos em acidente de trânsito. Segundo a OMS, o risco de colocar fim à própria vida entre pessoas com transtorno depressivo não diagnosticado é de 15%.

Reduzir esses números requer mudança de cultura. Para começar, é preciso entender o que a doença realmente é. O rótulo "doença da alma", por exemplo, não poderia ser mais inadequado. Até os gregos sabiam disso. Nos séculos 4 e 5 a.C., o médico e filósofo Hipócrates descrevia a melancolia como resultado de um desequilíbrio de bile no organismo. Isso mostra que, já na Antiguidade clássica, sabia-se que a depressão não era simplesmente um transtorno emocional, mas um problema biológico.

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Altos e baixos

Até alguns anos, achava-se que cerca de 90% das pessoas com sintomas depressivos sofriam de depressão unipolar, o tipo mais conhecido, marcado pelos sintomas "para baixo" (tristeza, falta de prazer, pensamentos catastróficos, apatia). O que a classe médica em geral ignorava é que, em até metade dos casos, pacientes com depressão são do tipo bipolar, isto é, em algum momento da vida têm, ainda que de forma leve e muito breve, alterações de humor "para cima" (euforia, aumento de energia, gastos impulsivos, atitudes arriscadas).

O termo bipolar expressa os dois pólos de humor ou de estados afetivos que se alternam nesse transtorno. Muitos bipolares têm períodos depressivos e ansiosos muito mais marcantes do que os de elevação de humor, e por isso acabam sendo confundidos com unipolares. As abordagens de tratamento, no entanto, são bem diversas nos dois casos. A psicoterapia pode ser importante para ambos, mas os medicamentos são outros. A principal classe de remédios usados é chamada de estabilizadores de humor, que tratam também os sintomas de ansiedade, irritabilidade e impulsividade, ajudando no restabelecimento do bem-estar geral e da regularidade da vida do paciente.

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Hoje, a ciência explica a doença como resultado de um desequilíbrio bioquímico no cérebro. Os neurônios, para se comunicar, usam substâncias conhecidas como neurotransmissores. Em pacientes deprimidos, essas substâncias não circulam como deveriam. Algumas áreas do cérebro chegam até a reduzir-se em pacientes deprimidos. (Depois de um ano de tratamento, porém, vê-se a área voltar a crescer.) "O 'elo perdido' são a serotonina e a noradrenalina", diz Delgado. "Em níveis inadequados, elas não apenas aumentam o risco de depressão como reduzem o limiar de dor." O efeito, conseqüentemente, são os sintomas físicos.

O surgimento de problemas corporais sem explicação, ou que não desaparecem quando tratados, deve ser sinal de alerta. "A tristeza é apenas um dos sintomas da depressão", diz Helena Maria Calil, professora de psicofarmacologia e diretora do departamento de psicobiologia da Unifesp. "E, às vezes, pode nem estar presente."

As causas da doença são variadas. A vivência de situações desgastantes ou traumáticas (como a perda de um familiar), abuso de drogas ou álcool e personalidade melancólica podem levar a um quadro depressivo, mas entre 30% e 40% das raízes são genéticas.

Um estudo realizado no centro médico da Universidade Columbia, nos EUA, revelou que a depressão se intensifica de uma geração para a outra. De acordo com a equipe, cerca de 60% das crianças cujos pais e avós sofreram de depressão têm transtorno psiquiátrico antes da adolescência. O número é mais do que o dobro de casos (28%) observados em famílias sem histórico. Felizmente, como explica Helena Calil, a genética é predispositiva, não decisiva.

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A RELAÇÃO

A depressão já foi vista como obra de Satã, mas a ciência provou que as raízes estão na bioquímica do cérebro. Conheça o histórico da relação humana com o problema através dos séculos
  • 400 a.C - Os gregos passam a explicar a depressão como uma doença física
  • Antiguidade - O problema é considerado um sintoma de possessão demoníaca
  • 200-150 a.C. - Aparecem as primeiras descrições clínicas da depressão no Império Romano
  • 1621 - O sacerdote inglês Robert Burton publica o tratado "A Anatomia da Melancolia"
  • 1637 - René Descartes introduz a idéia de corpo e mente separados, base da teoria sobre a depessão
  • 1796 - É aberto na Inglaterra o Retiro York, hospital para tratamento moral em vez de médico
  • 1800-1900  - Século do manicômio. As instituições são vistas como cura para todos os males
  • 1900  - Sigmund Freud esboça seu trabalho embrionário sobre a psicanálise
  • 1920-1930  - Experimentos físicos brutais são testados em pacientes como forma de cura
  • 1935  - A primeira lobotomia frontal é realizada em um indivíduo deprimido
  • 1962  - Ken Kesey lança "Um Estranho no Ninho", romance que marca o fim da era dos tratamentos abusivos
Ilustrações: Zé Otávio Zangirolami
A partir da revista Galileu.(n. 164-Fev/2005). Leia no original

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