DEPRESSÃO PODE NOS TORNAR MELHORES - 1

Ela não pode ser diagnosticada por exames de sangue, detectada em chapas de raios-x ou investigada em testes de resistência física. Mas, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde, será em duas décadas, a doença mais comum do mundo. Saiba por que pesquisas recentes apontam que essa pode ser uam boa notícia para todos nós

Virgínia de Ferrante: depressão revelou-se um período produtivo no qual
descobriu que não queria ser atriz, mas diretora de cinema
Crédito: Victor Affaro
Os primeiros sintomas começaram a aparecer quando Virgínia de Ferrante, 22, ainda estava na adolescência. Na época, chegou a ser gótica, daquelas que cultuavam a tristeza. A crise, no entanto, veio quando se mudou para Nova York para estudar teatro, aos 19 anos. Quando o curso acabou, três meses depois, viu-se sozinha, perdida e sem perspectivas na cidade mais badalada e famosa do mundo. “Foi aí que entrei em parafuso”, diz ela. Uma angústia brutal tomou conta de sua vida, tornando quase impraticável a rotina de estudante e garçonete. Não tinha ideia de que rumo tomar, muito menos o que queria fazer dali para frente. Buscou ajuda na terapia, tomou remédios, ficou sabendo que estava com depressão. Sofreu horrores, mas também fez grandes descobertas. Chegou à conclusão de que não queria ser atriz, mas, sim, diretora de cinema. Voltou ao Brasil, começou a estudar cinema e, aos poucos, foi conseguindo se entender melhor. “Foi um período de grandes mudanças”, afirma. Apesar da dor terrível, foi naquele momento que conseguiu parar para pensar em soluções e ser mais autocrítica. “Para mim, existiu uma Virgínia antes e depois de Nova York. Foi essa crise que me levou a estudar aquilo que realmente me faz feliz, que é direção de filmes.” Intuitivamente, ela entendeu o que a ciência vem se esforçando para demonstrar: que a depressão tem seu lado bom e que dela podemos tirar proveito se percebermos seu potencial transformador.

É o que defendem dois pesquisadores evolucionistas norte-americanos, em um estudo recente publicado no periódico Psychological Review no qual tentam desvendar o que chamam de “o paradoxo da depressão”. Guiados pela teoria da seleção natural de Charles Darwin (1809-1882), o psiquiatra J. Anderson Thomson, da University of Virginia, e o psicólogo Paul W. Andrews, da Virginia Commonwealth University, passaram anos tentando entender por que doenças mentais como a esquizofrenia afetam apenas de 1% a 2% da população mundial, enquanto a depressão já atinge mais de 20%. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde divulgadas em setembro de 2009, essa será, em duas décadas, a doença mais comum do planeta, à frente do câncer. Residiria aí o tal paradoxo: por que uma disfunção tão sofrida também é tão comum?

Segundo Darwin — ele próprio um notório deprimido, como explicitou em várias cartas ao longo da vida —, as espécies passam por um inexorável processo de adaptação em que características mais favoráveis a sua existência acabam sendo passadas de geração a geração. Trata-se de um afinadíssimo mecanismo de seleção e especialização que garante a permanência de traços que nos deixam mais aptos a encarar os obstáculos. Adeptos da psicologia evolucionista acreditam que a seleção natural não envolve apenas o corpo. As características da mente humana também seriam o resultado de uma longa jornada de depuração em nome da sobrevivência e reprodução. Se a teoria de Darwin é amplamente aceita até hoje no meio científico, argumentam Thomson e Andrews, então a depressão não pode ficar de fora. Em outras palavras, a depressão seria uma adaptação humana que chegou até nós com tamanha incidência não por acidente, mas porque precisamos dela como indivíduos.

De acordo com essa perspectiva, a depressão nada mais é do que uma resposta radical da mente para que encaremos nossos dilemas mais profundos. “Como a dor física, ela serve para sinalizar que existe um problema a ser resolvido”, afirma Thomson. “Seria maravilhoso se a gente não tivesse de sentir dor. Só que não é assim. A depressão, como a dor, é um mal necessário.” Esse mecanismo seria tão poderoso que nos faria parar e olhar na marra para dentro de nós mesmos, ainda que de forma muitas vezes caótica, nem sempre consciente e invariavelmente sofrida. Tamanha concentração da mente tem um preço, exigindo muitas vezes terríveis sacrifícios. Por causa dela, alguns param de comer, de trabalhar, de ver os amigos e de sentir prazer.

Integrante da mesma corrente de pesquisa que tenta mostrar que a doença não é apenas uma disfunção qualquer, Edward Hagen, psicólogo evolucionista da Washington State University, costuma compará-la a uma greve geral. “Por que os trabalhadores entram em greve? Porque não estão satisfeitos. Acontece o mesmo com nossa mente. Trata-se de um ultimato, um pedido de socorro para que mudemos o que está nos prejudicando.”

Uma crise de choro no meio de uma festa foi o alerta que fez a servidora pública Mariana Carpanezzi, 30, desabar. Sempre às voltas com o trabalho e o mestrado, achava que sua aparentemente inexplicável tristeza passaria com mais horas no escritório ou na universidade. O preconceito em relação à depressão a impedia de investigar melhor a razão daquele imenso vazio que sentia. Mas um dia veio o sinal vermelho. Teve de aceitar que estava doente. “Quando entendi o que tinha, foi libertador”, diz ela, que penou, porém conseguiu “ajustar os parafusos da vida”. Procurou um psiquiatra, que lhe receitou remédios — outro preconceito que teve de superar para conseguir dar a volta por cima. Associou a psiquiatria com psicanálise duas vezes por semana, o que foi fundamental para dar sustentação ao que classifica como um processo radical de mudança que perdura até hoje. Com a ajuda do tratamento, percebeu, por exemplo, qual o espaço que o trabalho deve ocupar em sua agenda e constatou que não é possível se sentir plena o tempo todo. “É claro que a depressão em si não é uma coisa boa, mas o modo como lidamos com ela pode ser algo benéfico. Acho que reli a vida de uma maneira positiva e me tornei uma pessoa melhor depois disso tudo.”

Por Erica Sallum / Reportagem: André bernardo, Haidi Lambauer e Rita Loiola

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