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Em filme, Susan Sarandon reúne família para se despedir antes do suicídio assistiassistido

4/25/2021
Apresento o que o cinema e o jornalismo têm a dizer sobre o tema suicídio assistido, através de duas obras recentes: o filme “A despedida”, cujo título original é “Blackbird”, e o livro “The inevitable” (“O inevitável”), ainda sem tradução para o português.

No cinema, disponível em streaming para ser saboreado em casa. Lily (Susan Sarandon) e Paul (Sam Neill) programam uma reunião de família inesquecível, mas não no sentido positivo do termo: naquele fim de semana, ela terá a oportunidade de se despedir dos entes queridos e cometerá suicídio assistido com a ajuda do marido, que é médico. Não há referências explícitas em relação à doença, mas Lily vem perdendo os movimentos e o prognóstico é de que, num curto prazo, seu estado se agrave e ela se torne totalmente dependente.

As duas filhas, Jennifer (Kate Winslet) e Anna (Mia Wasikowska), parecem concordar com a decisão da mãe, mas questões não resolvidas emergem durante aqueles dias carregados de emoção, mas também pontuados por risos e demonstrações de afeto. Numa participação pequena, mas expressiva, o episódio serve para que Jonathan (Anson Boon), o neto do casal, faça sua passagem para a vida adulta. Trata-se de uma refilmagem do longa dinamarquês “Coração mudo” e a provocação proposta pelo diretor Roger Michell, responsável por “Um lugar chamado Notting Hill”, se mantém: podemos decidir quando uma vida deve terminar? Temos o direito de ser senhores do próprio destino até o fim ?

A jornalista Katie Engelhart fez dezenas de entrevistas para escrever o recém-lançado “O inevitável”. O livro se concentra em seis pessoas: quatro delas que buscam uma forma “boa” de morrer e dois médicos que facilitam essa escolha – a diferença é que um realiza sua atividade legalmente e, o outro, não. Um dos argumentos mais utilizados pelos entrevistados é que a eutanásia de animais de estimação para que não sofram, que seria um ato de misericórdia, não tem seu equivalente para seres humanos.

Uma das histórias é a de Avril Henry, octogenária que consegue a droga numa loja de produtos veterinários no México. Em entrevista dada à NPR (National Public Radio), Katie afirmou que os dados disponíveis no estado do Oregon, o primeiro a permitir a eutanásia e o suicídio assistido, mostram que a maioria das decisões não está relacionada um quadro de dor excruciante: “as pessoas estão mais preocupadas em manter sua dignidade e autonomia no fim de suas vidas”.

Por Mariza Tavares
A partir do G1. Leia no original  :






Emoções merecem existir, mesmo o medo e a solidão

4/11/2021

Novos livros tratam dos sentimentos desconfortáveis que todo mundo tem

Pode ser porque uma coisa saiu diferente do planejado, ou porque teve briga ou bronca. Talvez tenha sido por causa daquilo que alguém disse de manhã. Ou vai ver ninguém nem lembra direito o motivo, mas a verdade é que agora, neste exato momento, há uma criança com raiva em casa. Muita raiva.

Tem gente que compara a raiva com uma grande tempestade —como se as duas funcionassem parecido. O céu está azul, e todo mundo brincando feliz. Do nada, aparece uma nuvem. Esta nuvem vai ficando mais cinza, mais escura, mais pesada, até que começa a chover forte.

"Às vezes a gente vai ficando com raiva e nem sabe o porquê. E, quanto mais raiva sente, mais raiva vem. Tudo se acumula como uma nuvem e, de repente, vem aquela chuvarada de palavras saindo da boca”, resume Christian Dunker, que é psicanalista, professor e escritor.

Christian explica uma coisa importante sobre a raiva: que ela pode criar a sensação de que as pessoas sabem mais de nós do que nós mesmos.

“Os outros veem no meu rosto uma coisa que eu ainda nem sei que estou sentindo. E isso me faz ficar com mais raiva. É como se o outro estivesse controlando aquilo que sinto. Por isso, a gente às vezes tem vontade de sumir.”

Nestes casos, é legal parar e examinar o que está causando a frustração, e até avisar aos outros, se for possível.

A raiva é algo que todo mundo sente, e que gostaria de poder controlar mais, diz Christian. “Às vezes a gente acha que sentir raiva é uma coisa errada, mas não é”, garante.

Para falar sobre sentimentos como este, o escritor Yuri de Francco chamou o ilustrador Renato Moriconi e, juntos, fizeram “O Menino que Virou Chuva” (editora Caixote, 144 páginas, R$ 48). Eles também acham que a raiva pode se parecer com uma tempestade.

"Quis contar a história de um menino que, de tanto chorar, virou chuva. Ele passa por todas as etapas, depois vem o sol, e ele termina com um momento de acolhimento, em um abraço”, adianta Yuri.

Para retratar ainda melhor a ideia de que tudo acontece rápido quando alguém muda de humor, o livro foi desenhado como um flipbook, ou folioscópio, que é quando as imagens parecem ganhar movimento ao ser folheadas.

Ninguém sabe dizer por que o menino do livro está chorando. “Sensações são coisas muito pessoais. A gente sabe que existe até choro de felicidade.”

“Todas as emoções que a gente sente merecem existir, não tem nenhuma que precisa ser tirada da roda”, promete o psicanalista Christian.

"Eu era um menino tempestade”, lembra Yuri. Ele conta que, quando criança, chorava muito, e alto. “Na adolescência tinha mais dificuldade para chorar. Acho que dei uma segurada nas emoções”, diz.

“Escrevi o livro para falar para as crianças que chorar é bom e é transformador, seja pelo motivo que for.”

Quando pequeno, o ilustrador Renato Moriconi era melancólico. Ele conta que até se relacionava, e gostava de fazer as pessoas rirem, mas que também sentia esta melancolia, que é como uma tristeza sem motivo concreto.

“Eu estudava em uma escola que ficava em frente ao prédio onde minha mãe trabalhava. Ela era minha heroína, me criou sozinha. E, no recreio, as crianças ficavam brincando, enquanto eu ficava deitado na gangorra olhando para o prédio dela”, lembra.

O músico e escritor americano David Ouimet publicou recentemente “Eu Fico em Silêncio” (Companhia das Letrinhas, 56 páginas, R$ 54,90), um livro sobre uma menina que não se sente compreendida pelos outros, e acha que não se encaixa no mundo.

“Sinto que não há livros infantis suficientes sobre as emoções desconfortáveis que todos nós sentimos”, explica David. “Se pudermos falar sobre estas coisas, podemos vê-las mais claramente e entender que estar triste, solitário ou assustado são sentimentos que todas as pessoas têm.”

Na história, a protagonista é uma menina que algumas vezes usa uma máscara, e que, por todos os lugares onde passa, seja na escola ou andando pelas ruas, se acha deslocada.

“Ela está ansiosa. Sente que todos estão falando sobre ela, e se sente pequena”, conta.


"A garota no centro do livro está muito perdida em seu próprio mundo. Ela parece diferente, fala de forma diferente. Como resultado, ela simplesmente escolhe ficar quieta. Eu acredito que são emoções que todos nós experimentamos ao crescer, e até mesmo quando somos adultos”, completa o escritor.

David conta que foi uma criança muito parecida com a menina de “Eu Fico em Silêncio”. “Eu era perdido em meu próprio mundo. Foi isso que me fez ser quem eu sou hoje, um autor, artista e músico. Foi como encontrei minha voz.”

“É muito importante a gente descobrir e respeitar quando quer ficar quieto”, ensina o psicanalista Christian. “Às vezes a gente quer inspecionar o que tem dentro do armário da nossa cabeça, sem dar satisfação para os outros.”

“Já reparou que os adultos não dão satisfação pra gente?”, questiona. “Mas eles querem saber da gente, e isso é chato. Porque às vezes eles perguntam e a gente não sabe responder. E, outras vezes, a gente diz uma coisa e eles escutam outra, e isso é terrível.”

Christian  diz que, quando parece que ninguém acha a palavra certa para conversar, e tudo que se diz gera mais confusão e incompreensão, é normal ter vontade de “entrar no buraco”.

“E está muito certo fazer uma pausa. Vai para a sua estação de tratamento de pensamentos e emoções, mas volta o quanto antes. Pede desculpas. Isso pode ser meio chato, mas é o melhor caminho. Porque os outros não estão lendo a nossa cabeça, e a gente não está lendo a cabeça dos outros.”

A partir  da Folha de S.Paulo 

MENTES DEPRESSIVAS : AS DIMENSÕES DA DOENÇA

7/11/2017
A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva fala sobre depressão e suicídio, tema abordado no livro "Mentes Depressivas: as três dimensões da doença do século".


Em Mentes depressivas: as três dimensões da doença do século, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa desmistifica a doença considerada um problema de saúde pública. Com linguagem envolvente e acessível a um público amplo, a autora aborda a depressão de maneira inovadora por meio das dimensões que a estruturam, a física, a mental e a espiritual.

Pesquisas comprovam que os índices de pessoas acometidas por quadros de depressão clínica aumentam a cada ano. Contudo, a falta de informação sobre o assunto impede o diagnóstico e impossibilita o tratamento adequado e eficaz contra o sofrimento crônico.

Os capítulos de Mentes depressivas abordam as diferentes faces da depressão, suas causas, sintomas e tipos, como a depressão infantojuvenil, aquelas que acometem pessoas na terceira idade e a depressão feminina, que acontecem principalmente durante o período pós-parto ou na menopausa. Na obra, Ana Beatriz ajuda a compreender a fundo o problema e apresenta estratégias para a recuperação e os tratamentos existentes.

Estudos científicos atuais revelam que 90% dos casos de suicídio estão associados a transtornos mentais que, se fossem corretamente diagnosticados e adequadamente tratados, evitariam um número significativo de perdas vitais. Por esse motivo, a autora dedica parte do livro para analisar o assunto, que ainda é considerado um tema tabu e tratado com preconceito e ignorância.

OS SUICÍDAS, LIVRO DE ANTONIO DI BENEDETTO

5/22/2015
Antonio di Benedetto

Publicado pela primeira vez em 1969, o livro conta a história de um jornalista que, ao se aproximar de seu trigésimo terceiro aniversário, começa a recordar o suicídio do pai, que se matou justamente com essa idade. Para piorar a situação, o jornalista é incumbido de fazer uma reportagem justamente sobre suicidas. O livro, então, se desenvolve com a principal personagem caçando histórias de suicidas, visitando necrotérios e locais onde as pessoas tentam se suicidar e, até mesmo, testemunhando uma cena, descrita em ritmo quase vertiginoso, em que um rapaz ameaça saltar de um edifício. Como se não bastasse, o jornalista ainda precisa percorrer a literatura sobre os suicidas. 

O livro, assim, recolhe um grande número de citações da literatura, filosofia e ciências sociais, formando uma espécie de antologia irônica sobre o suicídio. Paralelamente, o jornalista recorda-se do pai e começa, sempre muito turvamente, a pensar no próprio suicídio. No dia do fatídico aniversário, a personagem principal acaba mergulhando em um torvelinho psicológico cuja conseqüência é completamente inesperada. 

O final do livro, tão surpreendente quanto sua estrutura formal, talvez deixe o leitor perplexo. Aliás, o engenho do autor se revela principalmente na capacidade de conseguir extrair sensações diferentes, como humor, ironia e perplexidade, de um tema não raro na literatura e muitas vezes trágico. Esquematizado em pequenos fragmentos, que conduzem a literatura a uma velocidade tão vertiginosa quanto a psicologia das personagens, a narrativa de fato reordena diversos tópicos literários: temos aqui um livro argentino que se passa na Europa, cuja trama reclassifica sua possível tragicidade em outros níveis, tudo por meio de uma estrutura inovadora e bastante diferente da que era praticada pelos pares latinos de Di Benedetto. 

O livro é traduzido por Maria Paula Gurgel Ribeiro, já experiente em trazer para o português autores argentinos, e conta ainda com um interessante prefácio do escritor Luis Gusmán, conterrâneo de Antonio Di Benedetto e uma das estrelas da atual ficção da Argentina. A Editora Globo publicará seus três romances principais – Los Suicidas, El Silenciero e Zama – e dois livros de contos. 

A organização da coleção é de Ana Cecília Olmos, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, especializada em literatura argentina. El Silenciero e Zama terão prefácio do escritor argentino de Juan José Saer. 

CRÍTICAS :  “O Brasil foi apresentado à sua obra somente no ano passado, com a tradução do singular Os suicidas (1969), romance que explora as diversas faces de seu tema, expresso no título: referências literárias, dados estatísticos, condenações religiosas, explicações filosóficas em torno do suicídio, obsessão pactual do narrador.” Elias Ribeiro Pinto, Diário do Pará, 9 jul. 2006, Caderno D.

Sobre o Autor

Antonio di Benedetto nasceu em Mendoza, Argentina, em 1922. Desde cedo exerceu o jornalismo e a partir da década de 195 passou a dividir seu tempo entre as redações e a literatura. Logo no primeiro dia da ditadura militar que assolou a Argentina a partir de março de 1976, foi preso, o que demonstra inequivocamente o prestígio que seu nome atingira. Depois de intensa movimentação de intelectuais no exterior, di Benedetto foi para o exílio. Em 1984, retornou à Argentina, vindo a falecer em Buenos Aires dois anos depois. Seu livro mais importante, Zama, recebeu, dentro outros, o prestigioso prêmio Itália-América Latina de Literatura. A obra de di Benedetto foi traduzida para, entre outros idiomas, o alemão, o francês, o italiano e o polonês.

TRECHO DO LIVRO 'OS SUICÍDAS"

5/22/2015
Primeira parte
Os dias carregados de morte

O meu pai pôs fim à sua vida numa tarde de sexta-feira.

Tinha 33 anos.

Na quarta sexta-feira do próximo mês eu terei a mesma idade.

Embora a tia Constanza, com reserva mas sem tato, tenha mencionado esta coincidência, não voltei meu pensamento a ela até hoje, já que o tema, de certa forma, saiu ao meu encontro.

Na agência, o chefe me disse: "Pode ser a sua chance".

Sem requerer consentimento, ele me introduziu na tarefa. Sobre a escrivaninha, esparramou três fotografias e me incitou a descobrir o que possivelmente ele já havia observado.

- O que vê nelas?

Considerei que esperava de mim uma dedução fora do comum. Inclinado, examinei as fotos, que tinham, cada uma, um corpo humano, deitado e vestido. Eu disse:

- Vejo que estão mortos, os três.

- Não é uma resposta muito sagaz.

Aceitei sua mordacidade como uma advertência de que devia ver melhor, e rápido. Incomodou-me, mas transigi, mais pelo pressentimento de que começava a decifrar. Indiquei:

- Uma é mulher, dois são homens.

Realcei, lentamente, como se custasse a se inteirar. Prossegui, sem pressa:

- Ela e este outro conservam os olhos abertos. O terceiro, não.

- Oh! - disse o chefe, deixou de lado a escrivaninha e caminhou.

Então pensei que não sou um gozador e já bastava porque ele também podia dizer basta. Eu disse:

- Aqueles que estão com os olhos abertos continuam olhando...

O chefe se deteve, eu também.

Senti que entendia e que me importava o que havia entendido:

- Olham... como se olhassem para dentro, mas com horror.

Não precisava de sua aprovação - um som que me lançou -, nem o silêncio com que propiciou a impressão de que faltava alguma coisa. Sim, na minha mente havia um sinal, confuso, até que pude afirmar:

- Estão espantados, têm o espanto nos olhos e, no entanto, em suas bocas se esboçou uma careta de prazer sombrio.

Não duvidei de que havia acertado, que lhe havia ampliado a visão. Isso já bastava. O que em seguida, com urgência, eu precisava saber era o que lhe perguntei:

- Foram mortos?

- Não, se mataram.

 *   *   *

Era o embrião de uma série de matérias. Um embrião disforme.

Discutimos a série: história dos dois casos dos olhos espantados. Não conhecemos a história. Alguém, um profissional respeitável, proporcionou as fotos; não pode nos ajudar nem nos dizer quem são nem quem as tirou. Dois casos não dão para uma série. Mas a sua história é necessária. É preciso averiguar, pesquisa própria.

A polícia não vai colaborar. Pode-se experimentar. Não vai colaborar, não informa sobre suicídios. A publicação provoca o contágio. Suicídios por imitação, epidemia de suicídios, peste de suicídios.

Por que o horror introspectivo? Por que o prazer sombrio? Por aí se pode generalizar, mais material para mais matérias, a série, se confirmarmos a generalização. Sim. Não pode ser a história de dois, ou duas histórias que deixaram de ser notícia. Precisamos de casos frescos. Será preciso esperar. Esperar o quê? Que se produzam, e ver. Não, não se pode esperar, dispõe de dois meses. Temos pronta a circular para oferecer a série para os jornais. Podemos vendê-la para trinta vespertinos e três revistas coloridas. Quer que a matéria seja sensacionalista? Não, séria. A nossa agência não é sensacionalista. Como o senhor disse, vespertinos... Eu disse só isso. Para as revistas, você vai precisar de slides. Por que só as revistas coloridas? Pelo sangue, para que se aprecie o vermelho; senão, é preciso marcá-la com uma flecha e explicar na epígrafe, e se perde. Tem razão. Trabalhe com a Marcela. Por que a Marcela? Lembra, a reportagem do avião caído na cordilheira. Sabe se arriscar. Neste assunto não haverá riscos, vamos lidar com mortos. Não haverá? Assim espero. Quem sabe.

Recorro: Seria melhor o Pedro, eu preferiria trabalhar com um homem. Manda: Não, a Marcela.

Sem dizer, penso na Marcela como num negócio particular.

É ascética. É quase nova na agência e mal a conheço. Não nos gostamos. Não gosto dela, soltei por aí. Alguém me perguntou por quê. Eu disse: "Tem 30 ou 32". Anos, eu quis dizer.



Saio e me alivio. O verão me deslumbra. Me deslumbra e rapidamente deixa o meu corpo pegajoso.

Uma blusa com interiores vem pela calçada. Eu poderia lhe dizer alguma coisa. Outra, decotada. Nada digo a esta tampouco, é inútil para o vínculo, passam; mas eu a olho, quem sabe como, porque uma senhora me olha. É a censura e pretende me acuar.

Penso na série. Terei de ver pessoas que não me importam, porque não são as que fizeram; pessoas prevenidas, arredias (talvez a Marcela me ajude a chegar a elas; em seu estilo é um chamariz, tem 30).

Ponho o pé no caixote do engraxate.

E terei de falar, falar disso.

Penso no meu pai. Eu era como este menino, o engraxate, pequeno assim. Soube que ele havia morrido, ignorava como. Chorei até secar, dormi, acordei, a cerimônia continuava, as visitas sussurravam. Alguém, possivelmente a minha mãe, clamava: "Morte injusta!". Compreendi a história do injusta - deixava-nos sem ele -, mas não pude entender como a Morte se introduziu em casa e se apoderou do meu pai. Porque de manhã ele estava vivo, de pé e são como qualquer um de nós, e morreu de tarde, enquanto havia sol, e eu tinha o convencimento de que a Morte era uma figura sinistra que dava seus golpes na escuridão da noite.

Pergunto, ao menino que engraxa os meus sapatos, o que é a morte.

Ele levanta seus olhos marrons e me considera, de cima a baixo, entre surpreso e intimidado, embora não pare de escovar.

A minha pergunta foi excessivamente abstrata. Eu me corrijo e sorrio, para atraí-lo:

- Nunca morreu alguém que você conhecia, um vizinho, um tio?...

O menino se encurva sobre o seu trabalho, concentra-se e diz:

- Sim, o meu pai.

Emudeço.

Ele me espia, com curiosidade: advirto que não me rechaça. Procuro estabelecer - comecei a minha tarefa? - o que ele conhece dos alcances da morte, onde supõe que está aquele que morre.

Responde que o pai está num nicho, mas a mãe, no início contava que ele tinha viajado, e agora diz que ele está no Céu. Ele não acredita. Não acredita no Céu? No Céu sim, mas o Céu é para os bons e o pai batia na mãe.

Estou passando um dia carregado de morte. É suficiente. Entro num cinema onde está passando Alphaville. Trabalharei amanhã.



No entanto, de noite, separado da Júlia, embora junto dela, repasso o que disse o engraxate e noto que, definitivamente, não cheguei de volta à interrogação inicial: o que é, para um menino, a morte?

Peço para a Júlia que averigúe isso entre os seus alunos, na escola. Ela se alarma, defende-se, ofusca-se. Explico, apaziguo.

A série, o meu trabalho...

Nega-se obstinadamente. Diz que não é normal.

"Eu não sou normal?...", e a desconcerto.

Sei perfeitamente que ela não disse isso.

 *   *   *

Tomo café-da-manhã com a minha mãe. Habitualmente, é o único momento que passamos reunidos.

Ela me conta que se encontrou com a Mercedes, sua amiga,

e a dona Mercedes lhe disse: "Não tenho família, tenho televisor". Eu objeto: "Tem filhos e netos, e vive com eles".

- É, mas a deixam sozinha: entram e saem; jantam com o televisor ligado.

Não é uma recriminação para mim, embora eu possa deduzir uma moral.

O calor, que está se apoderando do dia, me altera. A minha mãe repara. Baixa persianas, oferece-me o ventilador.

Acredito que a minha mãe é a única pessoa que gosta de mim.

- Eu gostaria de viver num país com neve - diz.

Ela sempre disse isso. Eu, de minha parte, ofereci-lhe umas férias de inverno. Anualmente renovo o plano.

Repito: "Este ano iremos".

- Aonde?

- Para a neve.

- Ah, é. Sim, filho, iremos.

Em algumas manhãs ela se opõe e me diz para economizar para o carro pequeno. "Você precisa, é para o teu trabalho."

Isso me deprime, outros conseguem: carro e neve.

O meu irmão, que tem um Fiat 1500, oferece:

- Posso te levar?

A minha mãe compreende que a sua ração diária desse filho terminou e se entristece. Eu percebo, mas a minha vida está enredada com a rua.

O meu irmão beija o seu filho e a sua filha e o segundo menino e o terceiro menino. O terceiro traz nas mãos, bem destruída, Minotauro 7. Reconheço-a pelos pedaços de capa. Dou-lhe um bofetão e tiro a revista dele. A minha cunhada, da porta da cozinha, diz: "Maurício!", mais nada. Dá o alarme ao marido, reclama com ele, por causa desse irmão que o marido tem.

O meu irmão se abstém. Diz: "Calma", como um magistrado.

No caminho, não fala.

Um imprudente se mete e se salva porque o Maurício cravou os freios. Podia insultá-lo, com todo o direito; não o faz, eu o faço.

Normalmente não insulto ninguém, exceto aos sábados.

 *   *   *

A Marcela é do turno da tarde. Não poderei vê-la até as 4. Sem dúvida, não está sabendo que vão colocá-la comigo.

Aceituno, o cronista da agência que atua no Departamento Central de Polícia, não liga as fotos com acontecimentos dos quais ele se ocupou. Ele as faz circular entre os colegas da sala de jornalistas e as imagens voltam ao meu poder sem suscitar nenhuma lembrança entre os especializados.

Aceituno me vincula com a polícia científica. Deixa-me com o chefe.

Solicito colaboração informativa para a agência. A agência terá toda a colaboração de que precisar, a menos que se trate de causas pendentes de decisão judicial, delitos em investigação reservada, abusos morais contra menores e suicídios.

Eu não mencionei, ainda, as fotografias. Farei que não estou entendendo que elas se enquadram nas exceções que me vedam.

Disponho de tempo para conhecer o museu interno? Sim, disponho. O que vai contar, no final, é o lado amistoso.

Tomamos café junto à cabeça de um mafioso com a cara perfurada por três balas. Está há trinta anos na vitrine. Existe uma fórmula para conservar a cor da pele.

Ele nomeia os "cadáveres judiciais" e eu lhe formulo o problema: se eu possuo a foto de um cadáver judicial - quer dizer, com circunstâncias que dão lugar à intervenção da polícia e da Justiça -, mas desconheço nome e qualquer outra referência, como pode ser identificado?

Menciona o arquivo de pessoas desaparecidas, o protocolo de tudo o que se passou na autópsia, a memória visual dos técnicos, o critério seletivo que fecha o campo de investigação determinando o sexo, a idade aproximada, a época em que morreu (pela roupa), o ambiente e muito mais.

- Então, é possível?

- Absolutamente possível.

Conseqüentemente, extraio as fotos e peço a identificação e a história.

Recebe-as, observa-as, separa-as e diz:

- Aparentemente, são suicidas.

- São suicidas.

Então ele diz:

- Absolutamente impossível.

Ao sair, passamos pelos gabinetes. Há uma moça de avental branco e de pele muito branca. Ela me nota. É alguma coisa.

 *   *   *

Ando para escolher um restaurante com duas virtudes: peixe na grelha e pessoas que eu não conheça e que não me falem do que eu já sei, do que sai nos jornais, formamos opinião nas mesmas revistas.

Coincido diante do menu da vitrine com um turista que me pergunta onde se pode comer pratos típicos, e muda de idéia, não sei se adivinha o que eu estava procurando para o meu almoço: quer que o informe como se chega ao aquário. Finalmente, me agradece e declara: "Têm uma cidade muito bonita, vocês", e a este cumprimento respondo que ele não pode dizer "têm", porque eu não tenho nada, a cidade não é minha. Talvez nós não tenhamos nos entendido bem, porque ele disse: "Ah, o senhor tampouco é daqui".

É a época, e vêem-se muitos turistas, as turistas "são muito vistas", elas querem assim, o que se torna muito agradável.

Justamente, ontem à noite eu sonhei de novo que estava andando nu.
Antonio di Benetto

RESENHA : ENTENDIDOS, MAL ENTENDIDOS, DESENTENDIDOS E TOLOS

5/22/2015
“A única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior” (Laing)

Mês qualquer de 2007. A pilha de notícias recortadas amiúde, como diria o Zé Ramalho, me olhava naquele sábado. Vontade louca de ler. Daquelas que somente os fins de semana me permitem realizar em compulsão. Do jeito que eu gosto. Uma possível página amarelada de jornal, daquelas que a gente obsessivamente guarda para ler depois (provavelmente do caderno Dois ou da Ilustrada), me deu piniqueira. Uma comichão de desejo de ler. Titulo ponta de lança. Direto ao assunto. Lancei na lista.

No Brasil a partir de 2005, vagava pela Argentina desde 1967. Ano em que nasci. A fórceps. Na epígrafe a sentença de Albert Camus que eu viria a conhecer somente em 2010: “Todos os homens sãos pensaram em suicídio alguma vez”. Li 42 anos depois por terceiras mãos. “O meu pai pôs fim à sua vida numa tarde de sexta-feira. Tinha 33 anos. Na quarta sexta-feira do próximo mês eu terei a mesma idade”, ele me contou, o jornalista medíocre. Começava a sina. Dele. Minha. Nossa.

Por três anos. Em duas mudanças de apartamento ele não se perdeu. Mas precisou de uma preciosa visita jogar Antonio Di Benedetto novamente em meus braços. Ele, que sempre esteve ali, mirando na altura do meu queixo, diariamente, mais se fez notar esmagado entre a poeira dos tablóides do que em sua postura entrosadamente deitada. Tranqüilo. Alaranjado em meio a José Luis Peixoto e Luiz Antonio de Assis Brasil. “Ver claro é muito difícil”;

Sua conversa sem aspas, ou outros sinais, e direta me atraiu rapidamente. Como nos momentos fáticos dos pontos de ônibus ou elevadores nos quais nos vemos monossilábicos e atamancando as palavras. Entre um respiro e outro. “Tem razão. Trabalhe com Marcela. Por que a Marcela? Lembra, a reportagem do avião caído na cordilheira. Sabe se arriscar. Neste assunto não haverá riscos, vamos lidar com mortos. Não haverá? Assim espero. Quem sabe”. Sem travessões.

Fernanda queria um livro para passar o tempo enquanto eu trabalhava ou dormia. Rotina de visitante, de feriado. Uma semana entremeando 164 páginas. Por que Tiflis e Pizarro não suportaram viver? Qual é o mistério daqueles que se matam? Haveria sete dias para ela conhecer os rumos de Júlia, Mercedes, Bibi, Paolo, Maurício e outros. Tempos depois Fernanda me disse a literatura lhe ajudava a esperar meu alerta. As horas acabarem. Desentendi. “Justamente, ontem à noite sonhei de novo que estava andando nu”. Por muitas vezes isso se repetiria. Conosco.

O encontro do novo grupo de literatura viria acontecer somente quatro meses depois que a Fer tinha voltado para São Paulo. Eu e alguns amigos tínhamos inaugurado o bate-papo com “A Trégua”, do quase homônimo, o uruguaio, Benedetti. E, no mesmo dia, procurávamos por uma obra a ser debatida. Lembrei dos comentários da Fernanda dizendo o quanto a parte que ela lera de “Os suicidas” era divertida e engraçada. Leve. Sugeri. Tolas.

“Pergunto-lhe se seria capaz de fotografar um tremor. […] Insisto: ‘O tremor em si mesmo, não os efeitos e conseqüências: nem pessoas que correm nem uma parede rachada nem a torre caída de uma igreja’”. Era o argumento do personagem para se pensar o significado dos olhos estáticos e abertos de um morto naquele último instante; diante da morte sentiu algo. O que? É possível captar, interpretar? Do mesmo jeito Benedetto ia me guiando pelas impossibilidades de uma leitura só. Além dos entendimentos. Comuns.

Vieram os conceitos de morte. A pesquisa do autor na voz dos personagens. Os fragmentos de textos. Reportagens. Explicações filosóficas. Estatísticas e manipulações. Casadas ficção e realidade. Interpretação. A linguagem pós-moderna tomava as páginas daquele livro do século passado. “Viver é bom, às vezes. […] Ele ficou, no retrato, para sempre, jovem. Nunca será velho. Ninguém poderá humilhá-lo. Se não se vive, não é preciso agüentar que nos deixem viver. Os demais nos deixam viver, mas determinam como”.

Eu tinha apenas uma noite para decifrar a escrita entrecortada e fascinante; para mim – novidade. O grupo literário já revelava, virtualmente, o desapontamento e a nota desfavorável. A pontuação da turma beirava de zero a menos da metade. Muito longe da nove; eu lhe daria. “Prescindo do café-da-manhã, tomo um café preto, na cozinha, onde permanece com seu vinho tinto o copo que servi à Mae West”. Deliro – “Nascemos com morte dentro de nós […] Os corpos já se encontram nas padiolas, mas estas permanecem no chão. Panos ásperos os cobrem. Quero ver o rosto.” – sob edredons que vestem a noite gelada do cerrado. É julho em Brasília.

“Acho que é um pacto. É um pressentimento meu”. A trama vai envolvendo desentendimentos familiares. Traição. Ciúme. Competição. Melancolia. “O meu irmão se suicidou aos 60 anos. Eu nunca havia me preocupado seriamente com isso, mas, quando cheguei aos 50, a lembrança adquiriu vivacidade para o meu espírito, e agora eu a tenho presente”.

A narrativa é atraentemente descompassada, feito peito em arritmia frente ao medo ou à excitação. Ela coloca em plano secundário os nomes dos personagens e o fio da investigação sobre a motivação dos suicidas; apresentados como cadáveres nas primeiras páginas do enredo. Não importa. O mote é outro. O foco, o que se pretende instigar, está do outro lado do miolo impresso pela editora Globo. O livro é a arma que o leitor aponta para si. Para os próprios miolos.

Interessante, além da polêmica que o livro gerou no debate literário sobre a sua qualidade, é o preconceito que o título evidencia. “Os suicidas”. Colado ao lado do nome de seu autor. Logo abaixo da mancha alaranjada que escorre do topo para ilustrar sua capa. Aquarela? Sangue? Quem enxerga o que? A escolha em ler a obra, tardiamente traduzida no Brasil, gerou suspeitas. Um amigo disse: ela (eu) deve estar muito desiludida, deprimida e melancólica para sugerir essa leitura. “Doze, doze suicidas já houve entre os nossos. Eram fantasias de glória, revanches de quem vinha de uma existência de humilhada adversidade? Ele sonhava isso ou eu sonhei que ele sonhava?”. Mal entendidos. Desentendidos.

“Senti um tremor e indaguei na minha alma se era medo e eu não soube me responder, mas descobri que também podia ser a irrupção de um vivo gozo. Nesse momento, me acometeu algo inesperado, uma espécie de forte ataque de vaidade: enrolei o papel…”. Tive a chance de saber mais da morte por outras mentes e viventes. Durkheim. Cleópatra. Hamlet. Kierkegaard. Kant. Camus. Platão. Pitágoras. Camus. Balmes. Buda. Confúcio. Voltaire. Hegel. Nietzsche. Schopenhauer. Hume. Napoleão. Em complemento às religiões. “A tarde flui lentamente para o ocaso”.

“De fato, a questão não é por que eu me matarei, mas por que não me matar”. Às 17 horas, quatro antes do encontro, fechei a última capa entre: entendidos, mal entendidos, desentendidos e tolos. “São 11 horas. Terei de avisar, o que será embaraçoso. Devo me vestir porque estou nu. Completamente nu. Assim se nasce”. Vesti uma calça preta, uma blusa azul. Passei batom. Cheguei atrasada no Café com Letras. Pedi um chopp. Entre seis, o debate começou. “O vento continua, faz uuh, enfia-se por entre os edifícios”. Eu sonho também que vou descalça para o trabalho. “Sobra-me noite”. Ela chega.

Solange Pereira Pinto
A partir do Blog Mal de Montano. Leia no original

DIZER ADEUS À VIDA

5/05/2015
Florbela Espanca, por Botelho

"É uma resposta aos que chamam ao suicídio um fim de cobardes e de fracos, quando são unicamente os fortes que se matam! Sabem lá esses pseudo-fortes o que é preciso de coragem para friamente, simplesmente, dizer um adeus à vida, à vida que é um instinto de todos nós, à vida tão amada e desejada a despeito de tudo, embora esta vida seja apenas um pântano infecto e imundo!"
Florbela Espanca - Correspondência (1916)
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Para mim sem dúvida, Florbela foi e continua sendo uma das maiores poetisas da língua portuguesa, principalmente pela coragem de expor todos os sentimentos em suas poesias. Viveu em permanente estado de depressão, fumando em demasia, perdendo o brilho e a saúde. Cada vez mais abalada psicologicamente, mergulhou num estado de solidão que a fez distanciar-se cada vez mais da paixão pela vida. Em 1930, no dia do seu aniversário, Florbela Espanca colocou fim à sua agonia, suicidando-se. Aos trinta e seis anos calou-se a poetisa. Sua obra continua a ser alvo de estudos e interpretações de amantes literários e da comunidade científica ligada aos desígnios e mistérios da mente, como psicólogos e psiquiatras.

“Por mais que a ciência evolua e que a tecnologia avance jamais ela vai decifrar a mente humana, pois cada cabeça é um mundo e cada ser humano uma história, jamais caberá numa tese ou num fundamento.” (Afonso Allan).
M.K.
A partir da Comunidade QM
 
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