DEPRESSÃO PODE NOS TORNAR MELHORES - 2

Ao estudar as raízes evolucionistas da depressão, Andrews e Thomson focaram-se num tipo de pensamento que costuma ser comum em portadores da doença, chamado de ruminação. O nome deriva do hábito que as vacas têm de continuar mastigando por horas alimentos que já tinham engolido e voltaram do estômago. “O pensamento ruminante faz com que a pessoa pense continuamente em seus problemas”, diz a psicóloga Susan Nolen-Hoeksema, da Universidade de Yale. Até recentemente, havia um consenso científico de que a ruminação não passava de um tipo inútil e improdutivo de pessimismo. A própria professora defende, em parte, essa ideia: “Em alguns casos a ruminação analítica leva o doente a remoer seus problemas de forma tão passiva e repetitiva que acaba ficando ainda mais deprimido”.

Quanto o brasileiro gasta por ano (em reais) com antidepressivos e estabilizadores de humor

Uma ala psicologia evolucionista passou recentemente a ver a questão sob um prisma bem diferente. Andrews e Thomson acreditam que a ruminação envolve afiados processos analíticos que, se bem orientados, de preferência com a ajuda de especialistas, podem ser produtivos, ainda que dolorosos. Por meio da ruminação, pessoas deprimidas tendem a quebrar um problema complexo em questões menores, com as quais é mais fácil de lidar. “Isso leva a melhores chances de resolvê-los”, diz Andrews. Estudos apontam ainda que a depressão aumenta a atividade cerebral de uma área do córtex pré-frontal importante para manter a atenção. Isso contribuiria para a mente permanecer mais focada em um problema, minimizando distrações. No processo, o doente pode ter insights sobre sua vida que não seriam possíveis se estivesse são.
O escritor Osíris Reis, 30, enfrentou duas fortíssimas crises de depressão. A primeira começou em 2000, durante o curso de medicina. Apesar de perceber que não tinha nada a ver com a área, não conseguia largar os estudos. Ficou na faculdade um ano e meio, tempo durante o qual começou a perder a capacidade de sentir prazer em tudo. Na tentativa de recuperar a alegria, foi aumentando o ritmo da vida: fazia compras enlouquecidamente, ia a festas quase todas as noites. “Demorei a me tocar que isso era depressão. Só me dei conta quando larguei a medicina, fiz inscrição para o curso de mecatrônica em Brasília e, três meses antes do vestibular, não tinha vontade de levantar da cama — só encontrava ânimo para ir até a cozinha e pegar uma faca para me matar”, afirma. “Foi aí que percebi que a coisa era séria e decidi procurar ajuda médica.” Consultou-se com psiquiatras, mudou-se por um tempo para a casa dos avós, começou a escrever livros, entrou para um curso de audiovisual. Em 2004, uma nova crise apareceu, mas, desta vez, Osíris já sabia como se cuidar: aliou tratamentos psiquiátrico e psicológico e tomou medicamentos até melhorar. “Na hora em que você está mal, esse papo de que a depressão tem lado bom não faz sentido. Só pude ver pontos positivos quando comecei a me tratar”, diz. “Hoje sei que, se não fosse pela doença, eu teria mantido escolhas que fariam da minha vida uma porcaria.”

Patologização da tristeza

A depressão, ou melancolia, como era citada no passado, atinge muita gente faz milênios — há menções a ela que remontam aos tempos de Aristóteles, no século 4 a.C. Mas só recentemente passou-se a aventar que a doença tenha aspectos positivos. Novos estudos tentam jogar luz ao tema, como o recém-lançado livro Manufacturing Depression: The Secret History of a Modern Disease (Fabricando a Depressão: a História Secreta de uma Doença Moderna, sem tradução no Brasil). Nele, o psicoterapeuta Gary Greenberg, que também sofre de depressão, faz um relato franco do que classifica de patologização da melancolia. A partir do século 20, tristeza profunda passou a ser tachada de doença grave. Virou tema de pesquisas científicas, ganhou vocábulos cada vez mais extensos em livros de medicina e psicologia e, a partir dos anos de 1950, transformou-se em mal a ser combatido por remédios. Co-autor de The Loss of Sadness: How Psychiatry Transformed Normal Sorrow into Depressive Disorder (A Perda da Tristeza: Como a Psiquiatria Transformou Tristeza Normal em Disfunção Depressiva, inédito no País), outro interessante livro sobre o assunto, Allan Horwitz defende que isso acontece porque a psiquiatria contemporânea tende a deslocar os sintomas de seu contexto, classificando de disfunções mentais reações normais que temos diante de situações de estresse. Isso, segundo ele, tem sérias implicações não só para a medicina, mas para a sociedade em geral. “Diante dessa indústria da felicidade, que alardeia ser possível sentir-se bem o tempo todo, a gente se torna incapaz de ver a tristeza como parte natural da vida”, diz. “Isso leva pessoas que estão apenas tristes ou que têm quadros mais leves de depressão a buscar saídas rápidas para sua dor por meio de antidepressivos.”

Mariana Carpanezzi: ataque de choro repentino em uma festa foi o alerta para que a servidora pública percebesse que estava deprimida e que era preciso rever diversos de seus hábitos
Crédito: Anderson Schneider
Horwitz salienta, no entanto, que é preciso separar reações depressivas, que são respostas normais a situações difíceis, dos transtornos graves de depressão. “Quadros complicados, como depressão bipolar, precisam, claro, ser tratados com cuidado especial, muitas vezes de forma multidisciplinar, combinando medicamentos e terapias.” A própria pesquisa de Andrews e Thomson focou-se em tipos leves e moderados da doença — gente que, na opinião dos dois pesquisadores, acaba tomando antidepressivos sem necessidade, perdendo a chance de refletir sobre sua existência e tomar decisões que poderiam ser de grande valia. Culpa, segundo eles, da banalização no uso desses medicamentos.

No Brasil, os antidepressivos já são a quarta classe de remédios mais comercializada — atrás de anti-inflamatórios, analgésicos e contraceptivos. Em cinco anos, segundo levantamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a venda desse tipo de medicamento cresceu 48%. Pulou de 17 milhões de unidades vendidas em 2003 para 25,9 milhões em 2008. “Hoje antidepressivos são prescritos por médicos de todas as especialidades, mesmo quando não têm certeza do diagnóstico”, diz Luiz Alberto Hetem, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). “No entanto, há casos de depressão mais graves em que os antidepressivos são imprescindíveis. Já em situações leves, o acompanhamento psicológico é, muitas vezes, suficiente para que a pessoa se restabeleça”, diz. É importante salientar que distinguir um quadro grave de um leve ou moderado não é tarefa fácil. Cada caso precisa ser avaliado individualmente por especialistas na área.

O entrevistado J., 30, teve o primeiro contato com a doença quando tinha 15 anos. O gatilho foi a postura instável do pai. Primeiro, vieram ataques de raiva, seguidos de profunda tristeza que o levou a se afastar dos amigos. Ao longo da vida, teve algumas crises, que, com a ajuda de intenso tratamento, resultaram em importantes descobertas sobre si mesmo. Passou a ter consciência de que havia questões que precisava resolver consigo mesmo se quisesse ficar bem. Graças à doença, aprendeu a desenvolver sua autoconfiança. “Saí fortalecido e mais resistente a problemas. Aprendi a me respeitar, a me perdoar e a me dar valor”, diz. “Entendi que também mereço ser feliz, sem culpa, como todo mundo.”

Defender que depressão tem seu lado bom não significa dizer que seus portadores não precisam de tratamento. Muito menos que devam sofrer indefinidamente à espera de supostos benefícios da doença. Afinal, aí reside outro grande paradoxo da evolução: mesmo quando temos consciência de que a dor pode ser útil, a urgência em escapar dela é um de nossos mais emblemáticos instintos. Remédios, psicanálise, psicologia, cada um deve procurar o tratamento que julgar melhor para aliviar o sofrimento. Mas as recentes teorias sobre depressão trazem uma inovação preciosa ao nos mostrar que a tristeza e o pessimismo podem não ser de todo ruim, ajudando-nos a compreender nossas reações humanas de uma maneira mais natural. E a entender melhor aquele velho ditado que diz, sabiamente, que há males que vêm para bem.
Osírs Reis: crise durante o curso de medicina fez o hoje escritor largar a faculdade, perder o prazer em tudo e até pensar em se matar; apesar do sofrimento, afirma que a doença o ajudou a mudar de rumo na vida
Crédito: Anderson Schneider

Em parceria com J. Andy Thomson, o psicólogo evolucionista Paul W. Andrews lançou estudo recente em que defende que a depressão é uma adaptação que chegou até nossos dias com o propósito de nos fazer pensar a fundo em nossos dilemas.

* Como a depressão pode ser boa?
Em muitos casos, a depressão parece ser causada por dilemas complexos, dos quais nos damos conta apenas quando ficamos deprimidos. Se soubermos aproveitar esse período para analisar nossos problemas, isso pode ser muito produtivo.

* Como convencer um deprimido a não partir logo para formas de amenizar a dor por meio de remédios?
É difícil, mas acredito que o primeiro passo seja educá-lo. Muitas pessoas não sabem, mas, quando tomam aspirina para reduzir a febre, podem vir a prolongar a infecção. Sim, é desagradável, ninguém gosta de ter febre, mas é algo útil para nós. Com infecção, a dor vem da febre. Com problemas sociais, a dor vem da depressão.

* Quando você diz que pessoas deprimidas podem lidar bem com os problemas, faz alguma diferenciação entre os tipos de depressão?
Nem todos os deprimidos vão lidar melhor com seus problemas. Mas sabemos que quem busca lidar coma depressão tentando evitá-la tende a ter resultados piores. Eu diria que o curso natural da depressão é aceitar seus sentimentos em algum momento da vida, o que leva a um estado de análise que nos obriga a parar e tentar resolver as questões que nos afligem.

Para Leonardo Gama Filho, chefe do serviço de saúde mental do Hospital Lourenço Jorge, no Rio, a depressão é como a tuberculose ou hipertensão: não traz benefícios e precisa ser combatida. Leia abaixo porque ele acredita que não exista um lado bom na doença.

* A depressão pode ter um lado bom?
Depressão é uma doença devastadora que leva o indivíduo a perder o prazer em tudo. Prejudica as funções fisiológicas, compromete a memória, o raciocínio e a concentração. Depressão é o câncer da alma. O pior é que ela não atinge só seu portador, mas toda a família do paciente. Todos sofrem juntos. Não vejo qualquer benefício nela.

* A tristeza nos obriga a pensar em nossos problemas. Isso não é bom?
Sentir-se triste é normal. Você fica triste quando perde o emprego, briga coma namorada etc. A tristeza nos leva à reflexão, o que pode ser positivo. Já a depressão, com características patológicas, ultrapassa a fronteira da normalidade e causa prejuízos. Afirmar que a depressão pode ser benéfica é a mesma coisa que dizer que a diabetes é uma coisa boa.

* Há especialistas que defendem que antidepressivos mascaram as reais causas da doença...
O grande problema do antidepressivo é a banalização de seu uso. Os antidepressivos só são recomendados em casos mais sérios de depressão. Hoje qualquer ginecologista prescreve antidepressivo para a paciente que brigou com o marido ou que perdeu o desejo sexual. A culpa não é do remédio e, sim, de quem faz mau uso dele. 

Por Erica Sallum / Reportagem: André bernardo, Haidi Lambauer e Rita Loiola

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