O MUNDO DOÍA EM YOÑLU

Sites na internet incentivam adolescentes como o gaúcho Yoñlu a se matar e ajudam a escolher o método

"Eu acredito que a cadência e a harmonia certas no momento certo podem despertar qualquer sentimento, inclusive o da felicidade nos momentos mais sombrios’’
Essa frase é de um adolescente de 16 anos. Um garoto que amava Radiohead, Mutantes e Vitor Ramil. Foi escrita no dia de seu suicídio. Era parte de sua carta de despedida. Ele dizia aos pais que a música era a melhor maneira de enfrentar o desespero que viria. Antes de começar a morrer, colou a carta no lado externo da porta do banheiro. Acima dela, um cartaz: “Não entre. Concentrações letais de monóxido de carbono”. Vinícius ligou o aparelho de som – “porque é bom morrer com música alegre” – e entrou (Reportagem publicada em fevereiro de 2008, na Revista Época).

Vinícius Gageiro suicidou-se com a ajuda de internautas, aos 16 anos
Essa frase escrita na morte se transformou num legado de vida ao ser impressa no encarte do CD que será lançado ainda em fevereiro pela Allegro Discos, com 23 músicas de sua autoria. Parte delas foi entregue aos pais na forma de uma herança às avessas: “Deixei na mesa do computador um envelope vermelho da Faber-Castell que contém um CD com algumas de minhas músicas”. Yoñlu, o título do CD, é o nome com o qual batizou a si mesmo no mundo em que circulava com mais desenvoltura: a internet.

Ambos, Vinícius e Yoñlu, morreram por asfixia por volta das 15h30 de uma quarta-feira de inverno, 26 de julho de 2006. Vinícius foi estimulado ao suicídio e auxiliado por pessoas anônimas na internet. Ele é a primeira vítima conhecida no Brasil de um crime que tem arrancado a vida de jovens de diferentes cantos do mundo – uma atrocidade que poderia ser chamada de Suicídio.com.

Encobertos pelo anonimato da rede, internautas de diferentes nacionalidades têm dito em várias línguas a pessoas muito frágeis, a maioria delas adolescentes: “Mate-se”. O suicídio de Simon Kelly, de 18 anos, em Cornwall, na Inglaterra, foi um dos primeiros sinais de que algo de macabro estava acontecendo no reino da internet. No verão de 2001, o garoto aproveitou uma viagem dos pais para acessar sites sobre suicídio com detalhes técnicos de como poderia se matar. Morreu de overdose enquanto conversava com “amigos” virtuais em uma sala de bate-papo. A banalidade dos diálogos travados enquanto o adolescente tirava a vida é chocante. Ninguém tentou dissuadi-lo ou buscou ajuda. Um internauta procurou apenas convencê-lo a dar uma última olhada no mar antes do fim. Simon respondeu: “Fiz isso no domingo. Vejo vocês do outro lado”. A morte foi transmitida pela câmera do computador.

Yoñlu anunciou na internet
 que seu suicídio
 começaria a partir
 das 11 horas de 26/07/07
 
Somente em 2005, 91 pessoas, a maioria entre 20 e 30 anos, suicidaram-se no Japão, estimuladas por sites na internet. Apenas em um mês, março de 2006, houve três casos de suicídios coletivos combinados em fóruns virtuais no país: 13 internautas morreram. Desde o ano passado, 14 jovens da região de Bridgend, no sul do País de Gales, se mataram. Alguns deles estavam ligados por um site de relacionamento que difundia uma idéia “romântica” do suicídio. O mais velho tinha 26 anos. Nos últimos seis anos, a Papyrus, entidade dedicada à prevenção do suicídio, registrou 27 mortes incentivadas pela internet apenas na Grã-Bretanha. A vítima mais jovem tinha 13 anos.

LEGADO PRECOCE

No mundo virtual não há nenhuma perversão nova, apenas as velhas modalidades que já assombravam as ruas da realidade. A diferença é que, na internet, qualquer um pode exercer seu sadismo protegido pelo anonimato, na certeza da impunidade. Basicamente, a idéia é: “Se ninguém sabe quem eu sou, não só posso ser qualquer um, como posso fazer qualquer coisa”. Megan Meier, uma adolescente americana de 13 anos, foi uma vítima da mais banal das maldades, cuja potência de destruição foi multiplicada na internet. Depois de receber mensagens hostis de um “amigo” virtual no site de relacionamento MySpace, Megan subiu ao 2o andar da casa e se enforcou com um cinto no closet. Josh Evans, um garoto musculoso de 16 anos, louco por pizza, tinha dito a ela: “Você é uma pessoinha de m.... O mundo seria bem melhor sem você nele”. O detalhe: Josh nunca existiu. Era uma criação coletiva de suas vizinhas para se divertir com a menina gordinha.

O brasileiro Vinícius Gageiro Marques deixou o inventário de seu suicídio. Documentou sua morte na carta de despedida impressa em papel e no registro virtual da internet. Seguindo seus passos, é possível chegar ao impasse de uma época em que adolescentes habitam dois mundos – mas os pais só os alcançam em um.

Yoñlu compunha, fazia os arranjos, tocava piano e violão.
 Acima, o CD póstumo lançado pela Allegro Discos
Como Yoñlu, ele marcou seu suicídio no mundo virtual para as 11 horas de 26 de julho de 2006. No mundo real, Vinícius estava havia dois meses em internação domiciliar por determinação de seu psicanalista. Ele era um garoto superdotado, descrito como “extraordinariamente inteligente” e “extremamente sensível”. Filho único do casamento de um professor universitário que foi secretário de Cultura do Rio Grande do Sul com uma psicanalista, ele teve todo o estímulo para desenvolver inteligência e sensibilidade. Alfabetizou-se em francês quando a mãe fazia doutorado em Paris com a historiadora e psicanalista Elizabeth Roudinesco, biógrafa de Jacques Lacan. Mas o mundo doía em Yoñlu, como mostram as letras de muitas de suas músicas. Sua questão não era morrer, mas fazer a dor parar.

Os fones de ouvido eram o caderno dele. Não levava nada, não ouvia o professor e depois passava por média em tudo’’. GENOVEVA GUIDOLIN, orientadora educacional do Colégio Rosário
Vinícius criou uma fantasia para enganar os pais: a de um adolescente “normal”. Disse a eles que queria fazer um churrasco para os amigos, que estava interessado numa “guria”, que preferia não ter os pais por perto. Dias antes, pediu ingresso para um show que aconteceria depois de sua morte, iniciou um tratamento de pele, foi ao supermercado comprar a carne. Simulou um futuro onde não pretendia estar.

Vinícius parecia “curado” no mundo real. Na internet, porém, Yoñlu pedia instruções sobre o melhor método de suicídio. Em 23 de junho, comentou que adiaria sua morte porque muita gente estava elogiando suas músicas. A faixa 10 do CD, “Deskjet Remix”, em parceria com um DJ escocês, tocava em festas eletrônicas de Londres. O mundo virtual de Yoñlu alcançava gente de vários países em sites de suicídio e fóruns de música, com quem conversava num inglês desenvolto.

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