Desde 2009 o psiquiatra Rodrigo Bressan e outros pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) acompanham um grupo de adolescentes com alto risco de desenvolver doenças mentais graves como o transtorno bipolar e a esquizofrenia. Eles querem descobrir o momento adequado para agir antes que os problemas se manifestem e, assim, tentar evitar que se instalem. Ao mesmo tempo, procuram ensinar os adolescentes e seus familiares a lidar com situações estressantes que podem disparar as crises. Assim que possível, Bressan e os psiquiatras Elisa Brietzke e Ary Araripe Neto querem ver se compostos anti-inflamatórios, antioxidantes ou neurotróficos poderiam proteger as células cerebrais e, quem sabe, reduzir o risco de desenvolver essas doenças mentais.
A estratégia de tentar proteger o cérebro com esses e outros compostos se baseia na hipótese de que os neurônios e outras células cerebrais sofrem danos gradativos a partir do primeiro episódio mais intenso da doença – há quem suspeite de que os danos podem começar até mesmo antes. Estudos recentes indicam que nesses distúrbios o cérebro produz certos compostos em níveis nocivos que atrapalham o funcionamento das células e podem causar danos irreparáveis à medida que se sucedem, levando à deterioração das capacidades de raciocínio, planejamento e aprendizagem e até a uma alteração leve e definitiva do humor. Simultaneamente ao aumento na concentração dessas substâncias, haveria também uma diminuição nos de compostos neuroprotetores naturalmente produzidos pelo organismo.
Um dos pesquisadores que ajudou a desenvolver essa hipótese é o psiquiatra Flávio Kapc-zinski, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Medicina Translacional. Ele está convencido de que a evolução dramática dos casos graves de transtorno bipolar e de depressão é consequência de alterações fisiológicas causadas pelas crises recorrentes.
As crises que de tempos em tempos atormentam a mente também intoxicam o corpo, acredita Kapc-zinski. Elas seriam como tempestades químicas que desfazem o equilíbrio das células cerebrais e liberam compostos que, carregados pelo sangue, inundariam o organismo – às vezes levando a um grau de intoxicação quase tão grave como o enfrentado por quem desenvolve uma infecção generalizada (sepse). Repetidas ao longo de anos ou décadas, essas avalanches tóxicas precipitadas por surtos de depressão ou de mania produziriam um desgaste lento e progressivo do cérebro e de todo o corpo, reduzindo a capacidade de recuperação e acelerando o processo de envelhecimento.
Kapczinski começou a elaborar esse modelo teórico com base em experimentos feitos por sua equipe e por outros grupos para explicar como e por que a depressão e o transtorno bipolar, uma vez instalados e sem o tratamento adequado, seguem um padrão de agravamento progressivo que pode culminar com a morte precoce por problemas cardiovasculares e até câncer. De acordo com o modelo, as outras doenças que aparentemente nada têm a ver com o que se passa no cérebro poderiam evoluir como resultado dos desequilíbrios orgânicos gerados pelos episódios severos de depressão e mania.
Apresentada inicialmente em 2008 na Neuroscience and Behavioral Reviews, essa hipótese vem ganhando reconhecimento internacional. No último ano os estudos de Kapczinski já foram citados cerca de mil vezes em outros trabalhos. O psiquiatra australiano Michael Berk, da Universidade de Melbourne, acompanha essas pesquisas e, com Kapczinski, chamou esse novo modelo de neuroprogressão.
“Sabemos que esses distúrbios são progressivos e essa proposta teórica explica por quê”, diz Berk. Para ele, a interpretação de que essas doenças se agravam a cada surto pode gerar um impacto importante no tratamento por indicar a necessidade de diagnóstico e intervenção precoce e por sugerir que terapias neuroprotetoras possam atenuar o efeito desses problemas.
“A ideia está posta”, diz o pesquisador da UFRGS. “Agora é possível trabalhar para tentar confirmá-la ou refutá-la.” Ele sabe que o modelo é ousado e que é necessário reunir mais evidências para demonstrar que ele representa de modo adequado a evolução da depressão e do transtorno bipolar. “Temos trabalho para umas duas décadas”, diz Kapczinski.
Conceito e realidade
Segundo alguns especialistas, o conceito de neuroprogressão explica bem os sintomas clínicos, mas é possível questionar se essas alterações biológicas de fato ocorrem, uma vez que as evidências ainda são incipientes. Exames de imagens que indicam redução no volume de algumas áreas cerebrais em geral são feitos com pacientes de idades diferentes, que passaram por números distintos de surtos de mania e depressão. Provas mais consistentes exigiriam o acompanhamento de pacientes por vários anos, com a realização de exames de tempos em tempos para avaliar a evolução do problema.
Ainda que esteja longe de ser comprovada, essa proposta está abrindo caminhos para a busca de terapias mais específicas e eficientes e para o desenvolvimento de estratégias que permitam identificar precocemente as pessoas com risco de desenvolver esses problemas, como vem fazendo a equipe da Unifesp.
Se estiver correta, pode ajudar a entender como uma doença que de início se manifesta com um quadro relativamente benigno, em alguns anos deteriora a capacidade de raciocínio, planejamento e aprendizagem e altera definitivamente o humor a ponto de impedir uma pessoa de levar uma vida normal, como Kapczinski e outros médicos estão habituados a ver.
“Esse é um dos múltiplos mecanismos de progressão da doença”, afirma o psiquiatra norte-americano Robert Post, autoridade internacional em transtorno bipolar. “A evidência mais clara [de que pode estar correto] é que o número de episódios precedentes de depressão ou mania está correlacionado com o grau de disfunção cognitiva”, afirma Post, com quem Kapczinski colabora desde 2008.
Em um artigo publicado em maio deste ano no Journal of Psychiatric Research, Post, Kapczinski e Jaclyn Fleming analisaram quase 200 trabalhos com evidências de que a disfunção cognitiva aumenta, as alterações em algumas regiões cerebrais se intensificam e o tratamento perde eficiência à medida que cresce o número de crises e a duração da doença. No artigo, os pesquisadores reconhecem que não é possível saber se toda essa transformação é causa ou consequência da doença. Mas sugerem que, do ponto de vista clínico, parece prudente pensar em iniciar o tratamento o mais cedo possível e mantê-lo por um período mais prolongado.
“De acordo com essa visão, um surto de mania ou depressão pode ser entendido da mesma forma que o infarto”, diz Elisa Brietzke, ex-orientanda de Kapczinski. “Todos são eventos agudos, resultado de alterações que surgiram no organismo bem antes.” Ante essa interpretação, completa Araripe, “o objetivo do tratamento deixa de ser apenas a remissão dos sintomas e passa a ser evitar a recaída e auxiliar na manutenção da capacidade funcional”.
Danos às células
O modelo sobre a progressão das doenças mentais proposto por Kapczinski e seus colaboradores representa um avanço em relação aos anteriores. A proposta teórica mais aceita considera os transtornos mentais resultado da interação entre as condições sociais, econômicas, psicológicas e culturais em que o indivíduo vive (os fatores ambientais) e sua propensão a desenvolver o problema, determinado por suas características genéticas.
Essa abordagem mais antiga começou a ser construída há uma década pelos psicólogos Avshalom Caspi e Terrie Moffit, pesquisadores do King’s College, em Londres, a partir dos resultados de estudos em que acompanharam 1.037 crianças dos 3 anos de idade até os 26 anos. Nesses trabalhos, eles observaram que certas alterações em genes responsáveis pela produção de mensageiros químicos do cérebro (neurotransmissores) aumentavam o risco de uma pessoa desenvolver comportamento antissocial ou depressão.
Além da influência dos genes e do ambiente, Kapczinski e seus colaboradores incluem no modelo novo um terceiro elemento: os danos às células do cérebro e de outros órgãos causados pelos surtos da própria doença psiquiátrica. Esses surtos em geral se iniciam como uma resposta do organismo a um evento estressante, que pode ser intenso e breve, como um assalto a mão armada, ou mais ameno e duradouro, a exemplo daquele vivido por quem trabalha o tempo todo sob tensão. Repetidos muitas vezes, os episódios de mania ou de depressão acabariam por minar a capacidade do corpo de lidar com novos eventos estressantes. “Nossa hipótese é que a doença se realimenta”, conta Kapczinski.
Essa proposta parece explicar melhor o agravamento dos distúrbios psiquiátricos marcados por crises sucessivas, como a depressão e o transtorno bipolar. Nessas enfermidades, a influência de fatores ambientais sobre a propensão genética seria fundamental para disparar os primeiros episódios de mania ou de depressão. Mas esses fatores perderiam importância à medida que a doença avança e os surtos se tornam cada vez mais frequentes e prolongados – em alguns casos, mesmo com o uso de medicamentos – e o intervalo entre eles menores. Com o tempo, em geral a partir da décima crise, os surtos ganham autonomia e podem se tornar independentes das condições estressantes que antes os disparavam (ver infográfico).
Tormenta química
|
Transtorno bipolar |
Há tempos se sabe que em cada episódio leve ou intenso de estresse, provocado por um perigo real ou imaginado, o organismo reage liberando o hormônio cortisol. Produzido por glândulas situadas sobre os rins e lançado na corrente sanguínea em pequenas quantidades e por pouco tempo, o cortisol aumenta os batimentos cardíacos, eleva a pressão arterial e acelera a produção de energia. Enfim, prepara o corpo para fugir do perigo ou enfrentá-lo. Mas, em doses altas e por períodos prolongados como pode acontecer antes das crises, o cortisol começa a lesar os órgãos, entre eles o cérebro (
ver Pesquisa FAPESP n° 129).
Pouco tempo atrás pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos verificaram que, no interior das células cerebrais, em especial os neurônios, os níveis elevados de cortisol danificam as mitocôndrias, compartimentos em que o açúcar dos alimentos é convertido em energia. E danos nas mitocôndrias significam problema na certa. Elas produzem 85% da energia que as células consomem para se manterem vivas. Ainda que de modo indireto, o excesso de cortisol faz surgirem poros nas paredes das mitocôndrias, por onde vazam compostos tóxicos que avariam os lipídeos e as proteínas e alteram a estrutura da molécula de DNA no núcleo das células. Toda essa transformação aciona os mecanismos de apoptose, a morte celular programada.
Por meio de uma técnica que permite avaliar as milhares de proteínas produzidas pelo organismo em certo momento, o biólogo brasileiro Daniel Martins-de-Souza, pesquisador do Instituto Max Planck para Psiquiatria, na Alemanha, também obteve indícios de que o funcionamento dessas organelas está alterado nas doenças psiquiátricas. Em especial, na depressão verificou diferenças na fase final da produção de energia, a chamada fosforilação oxidativa ou respiração celular, que ocorre no interior das mitocôndrias.
As consequências dos danos às mitocôndrias não se restringem às células. Os compostos liberados por elas alcançam a corrente sanguínea e ativam proteínas do sistema de defesa que disparam a inflamação, como a interleucina-6 (IL-6), a interleucina-10 (IL-10) e o fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa). Chegando ao cérebro, essas proteínas ativam outras reações bioquímicas que causam a morte de mais neurônios. Segundo Kapczinski, esse processo realimenta a destruição celular, reforçada por outro fenômeno típico do transtorno bipolar: a superprodução do neurotransmissor dopamina, que também aciona a apoptose.
Foi medindo os níveis desses compostos no sangue que o grupo de Kapczinski identificou um fenômeno ao qual pouco se dava atenção: os surtos causam uma toxicidade sistêmica. Segundo ele, durante os episódios de mania e depressão, o nível de compostos associados à inflamação era bem mais elevado que o normal no sangue de pessoas com transtorno bipolar – em alguns casos, era semelhante ao de pessoas internadas em unidade de terapia intensiva com infecção generalizada (sepse).
Em roedores, já foi demonstrado que a toxicidade que se vê no sangue corresponde às alterações nas células cerebrais. Mas isso ainda precisa ser comprovado em seres humanos. “O melhor teste para comprovar os efeitos tóxicos dos episódios seria fazer uma intervenção para evitá-los e verificar se essa intervenção seria capaz de evitar alterações neurobiológicas”, diz Post.
A maioria das células parece sobreviver a essa tormenta química, ainda que com danos. Imagens do cérebro em funcionamento e exames de microscopia do tecido cerebral post mortem indicam que, nas crises de mania ou de depressão, algumas regiões perdem 10% a 20% mais neurônios do que em condições normais. De acordo com psiquiatras e neurologistas, esse nível de perda não é suficiente para classificar os transtornos de humor como doenças neurodegenerativas. Tanto no transtorno bipolar como na depressão o problema maior é que os neurônios que sobrevivem não permanecem íntegros: eles aparentemente perdem prolongamentos chamados neuritos, que os conectam com outros neurônios.
Muitos pesquisadores da área acreditam que é a perda de conectividade neuronal que compromete o funcionamento das regiões cerebrais mais afetadas nos distúrbios do humor. O fato de serem alterações sutis pode explicar por que o neuropatologista alemão Alois Alzheimer, que descreveu 100 anos atrás os danos neuronais típicos da doença que leva seu nome, não encontrou alterações importantes no cérebro de pessoas com depressão – razão por que se passou a dizer na época que a neuropatologia era o túmulo dos psiquiatras. “Apesar de sutis, essas transformações seriam suficientes para causar uma reorganização patológica do cérebro”, afirma Kapczinski.
As transformações anatômicas do cérebro nas doenças do humor começaram a ficar evidentes há cerca de 10 anos, quando Grazyna Rajkowska e seu grupo na Universidade do Mississípi verificaram uma redução no volume do córtex pré-frontal de pessoas com depressão. A diminuição de volume nessa área e também na região dos ventrículos vem sendo confirmada por exames de imagem também no transtorno bipolar. Localizado na parte anterior do cérebro, o córtex pré-frontal é responsável pela estruturação do raciocínio, pela tomada de decisões e pelo controle do comportamento. Essa alteração morfológica permite explicar por que, com o avanço da doença, quem tem transtorno bipolar perde progressivamente a capacidade de planejamento e aprendizado. Essas pessoas também se tornariam mais impulsivas e suscetíveis às emoções por ocorrer simultaneamente um aumento do volume da amígdala, que coordena a resposta ao medo e às emoções negativas.
Hipótese em formação
Kapczinski começou a colecionar evidências de que uma tormenta química se instala no organismo de quem sofre de transtorno bipolar em 1997, quando retornou de seu doutorado na Inglaterra e de um período de estágio no Canadá. Na época o grupo chefiado por ele no Laboratório de Psiquiatria Molecular da UFRGS havia notado que pessoas com transtorno bipolar, além das alterações psicológicas e cognitivas em geral observadas pelos psiquiatras, apresentavam no sangue níveis elevados de compostos que indicam danos nas células cerebrais e taxas baixas de fatores que protegem essas células. “As moléculas que estudamos funcionam como biomarcadores [indicadores de alterações biológicas] que permitem distinguir se a doença se encontra num estágio inicial ou avançado”, afirma Kapczinski.
E conhecer o estágio da doença é importante para se indicar o tratamento adequado – e essa nova hipótese pode ajudar a aprimorar o uso dos medicamentos. Há evidências de que o controle da enfermidade logo após os primeiros episódios de depressão ou de euforia preserve a capacidade de recuperação do organismo, impedindo a degradação psicológica e cognitiva. Os medicamentos – estabilizadores do humor, antidepressivos, antipsicóticos e anticonvulsivos, usados sozinhos ou em combinação – em geral são eficazes em 80% dos casos de transtorno bipolar e de depressão e, comprovadamente, produzem efeito neuroprotetor, em especial o lítio, um estabilizador do humor barato e eficiente, que antes era usado para combater estresse, gota e pedras no rim.
Mas os psiquiatras nem sempre conseguem acertar a medicação e a dose na primeira tentativa. Um estudo norte-americano recente, conduzido por pesquisadores da Escola Médica Mount Sinai com 4.035 pessoas com transtorno bipolar, verificou que 40% delas, em especial aquelas com quadros depressivos mais graves, só conseguiam manter a doença sob controle tomando três ou mais medicamentos.
Kapczinski acredita que, em geral, essas doenças atingem um estágio muito mais difícil de ser controlado após a décima crise, que costuma ocorrer por volta de 10 anos após as primeiras manifestações da doença. Por essa razão, os psiquiatras consideram fundamental iniciar o tratamento com medicamentos o mais cedo possível. Também já se havia observado que o lítio, um dos medicamentos mais usados para tratar o transtorno bipolar, perde eficácia após o décimo surto (ver gráfico).
As pessoas com transtorno mental normalmente só vão ao psiquiatra muito tempo depois de surgirem os primeiros sinais da doença. Podem correr anos até um especialista fazer o diagnóstico correto e receitar os medicamentos adequados. No caso do transtorno bipolar, o período decorrido entre a primeira manifestação do problema e início do tratamento varia de 5 a 10 anos, tempo suficiente para surgirem complicações no trabalho, na convivência com a família e os amigos e a vida se desestruturar.
As partes e o todo
Foi analisando as variações nos níveis desses biomarcadores no sangue de pacientes que Kapc-zinski sentiu necessidade de buscar uma explicação mais abrangente, que permitisse associar os sinais clínicos da doença às alterações fisiológicas e anatômicas que a ciência começava a detectar no cérebro de pessoas com transtorno bipolar, que em média atinge 1% da população – calcula-se que até 8% possam apresentar formas mais leves –, e outro distúrbio do humor bem mais comum: a depressão maior ou unipolar, que quase 15% dos adultos desenvolvem ao longo da vida.
Kapczinski viu que não estava satisfeito com o que tinha em mãos quando recebeu um convite para apresentar os resultados de seu grupo em um simpósio internacional no Hospital Clínic de Barcelona, na Espanha, em meados de 2006. “Faltava uma cola teórica que mostrasse como os dados se encaixavam”, diz Kapczinski.
Ele e sua equipe haviam coletado amostras de sangue de pessoas com transtorno bipolar durante os períodos em que se experimentam os estados extremos de humor, que variam de uma tristeza intensa e baixa autoestima a uma grande vitalidade e energia muito além do normal. Em uma bateria de testes, o psiquiatra Angelo Miralha da Cunha, então na UFRGS, observou um fenômeno novo tanto nas crises depressivas como nos episódios de mania: os níveis do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), de ação neuroprotetora, eram ao menos 25% mais baixos do que nas pessoas que não apresentavam o transtorno ou que o mantinham sob controle com a ajuda de medicamentos.
Ao mesmo tempo, Ana Cristina Andreazza e Elisa Brietzke, que integravam a equipe de Kapc-zinski, detectaram taxas mais elevadas de proteínas indicadoras de inflamação, além de níveis mais altos de radicais livres, moléculas altamente reativas, com potencial para lesar as células, durante os períodos de alteração do humor. Esses dados sugeriam que o sangue poderia guardar pistas do que se passava no cérebro. Mas, àquela altura, não era possível saber com segurança o que essa alteração significava nem por que ocorria.
Cola teórica
Kapczinski encontrou a cola teórica que procurava nos estudos do neurocientista norte-americano Bruce McEwen. Em 2000 McEwen havia proposto a hipótese de que situações estressantes obrigam o organismo a fazer ajustes para recuperar a estabilidade perdida. McEwen chamou essa adaptação de alostase, uma mudança necessária para restabelecer o equilíbrio (homeostase). E disse mais. Ao longo do tempo essa adaptação cobrava um preço: causava o desgaste do organismo.
As propostas teóricas do psiquiatra Robert Post completavam essa ideia. Na década de 1980, Post havia sugerido que os sinais clínicos do transtorno bipolar se tornariam mais intensos a cada crise, em consequência da maior sensibilidade dos circuitos cerebrais afetados nos episódios anteriores. O fenômeno, chamado em inglês de kindling, havia sido descoberto duas décadas antes por Graham Goddard, neurocientista inglês que estudava a epilepsia. Durante testes com roedores, Goddard notou que estímulos elétricos de baixa intensidade, inicialmente incapazes de causar danos ao animal, passavam a disparar crises epilépticas depois de repetidos algumas vezes – sinal de que o cérebro havia se tornado mais sensível.
“A partir desses experimentos, outros autores começaram a conceituar a ideia de que o cérebro aprendia a ficar doente também em outras situações, em especial no transtorno bipolar”, conta o neurofisiologista Luiz Eugenio Mello, da Unifesp. “De acordo com essa ideia, modificações no sistema nervoso central, possivelmente no nível das sinapses [conexões entre as células cerebrais], seriam capazes de transformar um cérebro pouco doente em muito doente”, explica.
Ao analisar seus dados à luz da ideia de alostase e de sensibilização – mais tarde reunidas no conceito de neuroprogressão –, Kapczinski encontrou o vínculo entre o que seu grupo havia observado e as alterações de volume em algumas áreas do cérebro que equipes estrangeiras detectavam. Essa unificação de conceitos poderia explicar a origem dos sinais clínicos característicos dessas doenças e, além disso, por que as pessoas com transtorno bipolar e depressão podem morrer entre 25 e 30 anos mais cedo do que as pessoas sem distúrbios psiquiátricos. Uma proporção maior das pessoas com transtorno bipolar e depressão desenvolve câncer e problemas cardiovasculares.
Por influência do neurocientista Iván Izquierdo, Kapczinski fez algo pouco comum na área da saúde no Brasil: a formulação de uma teoria para explicar o desenvolvimento e os desdobramentos de doenças psiquiátricas. Como toda tentativa de reproduzir uma realidade a partir dos fragmentos que podem ser identificados e medidos, o modelo teórico idealizado pelo grupo gaúcho continua em constante aperfeiçoamento. Desde a apresentação em Barcelona, Kapczinski e seus colaboradores no Brasil, na Austrália, nos Estados Unidos e na Espanha trabalham para aprimorar essa proposta teórica e ver se estão no caminho certo.
O próprio Kapczinski está pondo sua hipótese à prova ao testar em camundongos uma versão modificada do antidepressivo tianeptina, desenvolvida na UFRGS, com o propósito de aumentar a proteção dos neurônios. Outra forma de verificar se a hipótese está correta é examinar as alterações químicas e celulares em amostras de bancos de encéfalos de pessoas com doenças psiquiátricas, como o que os psiquiatras Beny Lafer e Helena Brentani estão organizando na Faculdade de Medicina da USP. Em outra linha de trabalho, Lafer iniciou recentemente um teste clínico com suplementos do aminoácido creatina, que deve melhorar o funcionamento das mitocôndrias e também pode aumentar a proteção celular.
Ana Cristina Andreazza, atualmente pesquisadora da Universidade de Toronto, onde investiga os efeitos do mau funcionamento das mitocôndrias nas células cerebrais, lembra que uma dieta adequada e rica de antioxidantes também pode ajudar na proteção cerebral.
“A hipótese da neuroprogressão é um dos modelos importantes hoje em dia para explicar a progressão dessas doenças”, comenta Lafer, colaborador do grupo gaúcho. “Há outras hipóteses, baseadas na genética, na interação entre genes e ambiente e na inflamação, mas ainda não existe consenso.”