A realizadora austríaca fala sobre “Amor Louco”, o filme sobre um pacto de suicídio duplo que ganhou o grande prêmio do Lisbon Estoril Film Festival
O poeta Heinrich von Kleist procura companhia para o suicídio e acaba por encontrar Henriette Vogel, casada com um parceiro de negócios e a quem foi diagnosticada uma doença incurável. A história verídica ideal para que Jessica Hausner deitasse para o lixo o seu antigo argumento sobre um suicídio que corre mal e remexesse nos baús da Alemanha no início do século xix. “Amor Louco”, o filme da realizadora austríaca de 42 anos, estreou em Cannes o ano passado na secção “Un Certain Regard”, foi premiado no Lisbon & Estoril Film Festival e chega agora a Portugal. Num hotel em Lisboa, a realizadora fala ao i sobre loucura, suicídio e como tentou fazer um filme que fugisse aos clichés históricos.
De onde surgiu a ideia para um filme sobre um suicídio a dois?
O primeiro rascunho do argumento para este filme foi feito há muito tempo. Há uns dez anos, por aí. O plano inicial era contar a história de um suicídio duplo e lembro-me da primeira história que escrevi, a de um casal que tenta matar-se em conjunto mas que não consegue. Um deles morre antes do outro e o outro não morre de todo… Era qualquer coisa deste género, uma história sobre o falhanço do plano, passada nos dias de hoje.
Mas acabou por concentrar-se num episódio real e histórico.
Não gostava deste argumento porque era muito trágico e pesado. Então fiz outro filme [“Lourdes”, de 2009, que ganhou o prémio de Melhor Filme em Veneza] e só depois voltei a concentrar-me no suicídio. Foi nessa altura que encontrei um artigo sobre a morte de Heinrich von Kleist e Henriette Vogel.
O que a fascinou na história?
O facto de Kleist ter perguntado a várias pessoas se queriam morrer com ele. Primeiro perguntou ao melhor amigo, mas ele não estava interessado. Depois perguntou à prima, Marie, mas ela não queria morrer com ele. E só então encontrou Henriette Vogel, que pensava que ia morrer de qualquer forma por causa da doença que tinha e disse-lhe que sim.
Abandonou então o argumento antigo.
Sim, depois nem toquei no outro argumento. Comecei do início. Até porque gosto que seja uma coisa histórica, ajuda-me a ter alguma distância sobre os acontecimentos e a estudar tudo o que está à volta. Não gosto de contar só uma história individual, gosto de perceber o grupo ou a sociedade em que estas pessoas vivem. E aqui tenho distância em relação a 1800, posso ver como era a situação nessa altura, é por isso que o filme fala dos dois lados de um acontecimento, que é verdadeiro e falso ao mesmo tempo.
Leu muita coisa sobre a época e sobre a vida de Heinrich von Kleist ou preferiu ter a sua própria interpretação das coisas?
Não li muitas biografias de Kleist porque não queria influenciar a minha interpretação da história. Mas li muita correspondência dessa altura, muitos diários e cartas, artigos de jornal e ensaios filosóficos para aprender como era a linguagem. Também fui muito influenciada por pinturas. Por exemplo, por Vermeer mas também por pintores do Renascimento.
Já que fala em pinturas, o filme é mais colorido que os filmes da época a que estamos habituados. Foi propositado?
Quisemos ser rigorosos nos detalhes históricos, mas não quisemos que fosse um filme histórico clássico. O guarda-roupa, por exemplo, foi influenciado por detalhes de moda dos dias de hoje. Mesmo os filmes clássicos que tentam replicar o que aconteceu em determinada altura não conseguem ser rigorosos. Ninguém estava lá nessa altura. E a partir do momento em que se percebe isso há uma certa liberdade para seres diferente, por isso tentámos investigar detalhes e imagens que não são muito comuns. Na maior parte destes filmes sobre o início do século XIX na Alemanha vês cores como o preto, o branco, o castanho e o cinzento. E pensámos: porque não fazer o contrário, com cores? E o material está lá. Os tapetes, as cores, é tudo de 1800, por isso é tudo uma questão de liberdade de escolha.
Como é que têm sido as reações ao filme?
Na Alemanha as pessoas já conheciam a história porque o Kleich é muito conhecido. Estive a seguir as estreias em várias cidades por todo o mundo [a seguir a Lisboa estará na Coreia] e as reacções têm sido diferentes. Riem-se por causa da obsessão de Kleich pelo suicídio. Em geral gostam do humor, já que o filme não está escrito de uma maneira trágica.
Sim, é uma espécie de piada. Mas algumas pessoas ficaram chocadas com a ideia de que a Henriette ainda queria dizer alguma coisa [antes de Kleich a matar]. O que acho interessante é que as pessoas têm sempre muitas interpretações. Já tinha experimentado isso também com outros filmes meus, todos eles têm alguma ambiguidade e por isso há espectadores muito certos de uma coisa e outros que dizem o contrário.
Digo que estão todos certos. O filme está aberto a várias interpretações e era isso que queria. É essa a razão principal para fazer filmes, para dar a conhecer esta abertura numa altura em que tentamos sempre arranjar títulos ou categorias para as coisas. Elas podem ser muito contraditórias.
Algumas pessoas acham que Kleist era doente mental. Qual é a sua interpretação?
Consigo percebê-lo muito bem. Acho que ele, de alguma forma, é louco. Mas todos nós o somos de alguma maneira. Uns escondem-no melhor que ele. Ele diz o que quer e isso é muito estranho. Mas, sinceramente, acho que se disséssemos o que realmente desejamos os resultados seriam incríveis. Todos nós seríamos loucos. Nós só nos adaptamos melhor ao que é esperado. Ele é um homem teimoso que não tem nenhuma incapacidade, por isso até o percebo e gosto dele.
Ela é o oposto. É tão inconsciente de si própria e do que ela quer que se torna o oposto. Ela é levada a fazer alguma coisa [neste caso ao suicídio] mas ainda assim não é uma vítima.
Não estive cá durante o festival, mas fico feliz quando os filmes que faço têm algum sucesso, até porque sou uma pessoa muito autocrítica e por isso é bom para mim.