Foi lançado no Brasil o livro "Stefan e Lotte Zweig - Cartas da América", obra, organizada pelos historiadores Darién J.Davis e Oliver Marshall, e que reúne cartas que estavam sob a guarda de Eva Alberman, filha de Hannah e Manfred Altmann, irmão de Lotte. A correspondência, em boa parte direcionada aos pais de Eva, apresenta aspectos do cotidiano e da intimidade do casal e serve como crônica da decadência física e mental que os levaria à morte. O livro também traz, como pós-escrito, uma carta da poeta e diplomata chilena Gabriela Mistral sobre o suicídio do casal publicada em março de 1942 no jornal argentino "La Nación" e resgatada após décadas no esquecimento.
Outra obra lançada na onda das efemérides ligadas a Zweig é a história em quadrinhos "Les Derniers Jours de Stefan Zweig" (os últimos dias de Stefan Zweig), publicada na França em fevereiro e atualmente sendo analisada por editoras do Brasil. A HQ é uma adaptação do livro homônimo (e semificcional) escrito pelo francês Laurent Seksik.
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Veja abaixo a carta da poeta e diplomata chilena Gabriela Mistral sobre o suicídio do casal, publicada em março de 1942 no jornal argentino "La Nación" sobre o suicídio de Stefan Zweig.
Leia a íntegra da carta abaixo:
Eduardo Mallea:
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Capa do livro "Les Derniers Jours de Stefan Zweig"
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Seguem anexos comentários de alguns dias atrás, onde você encontrará um recado do nosso Stefan Zweig. Não podia enviá-los hoje, 24 de fevereiro, sem acrescentar algumas palavras sobre o terrível dia 23. Fui ao centro de Petrópolis às 11h30; meu ônibus deve ter passado pela casa de nosso amigo ao meio-dia: a essa hora ele e sua mulher agonizavam ali, sozinhos, sem que ninguém soubesse dessa agonia.
A empregada estava acostumada a que seus patrões dormissem até as 10; ela não estranhou, ao se aproximar da porta ao meio-dia, o fato de não ouvir "a respiração do senhor Zweig".
Somente às quatro horas a pobre mulher se atreveu a abrir a porta. Avisou à polícia; estava tão transtornada que, ao atender um arquiteto francês que foi visitar o casal, respondeu assim: "Sim, eles estão em casa, mas estão mortos."
A polícia chamou o presidente do PEN Clube, Dr. De Souza, a quem estava endereçada a carta do mestre para seus amigos e que talvez você já tenha lido.
O doutor foi comunicar pessoalmente a tragédia ao presidente --que ordenou que se fizessem as exéquias por conta do Estado-- e informou à imprensa do Rio. Nós soubemos da tragédia por um telefonema de M. Dominique Braga, às 21h. Eu já havia me recolhido para dormir e ouvi, sem entender, o seguinte diálogo: "Não consigo ouvi-lo, senhor Braga; fale mais alto. O telefone está muito ruim. Continuo sem ouvir nada. Não consigo lhe ouvir."
E depois: "Que coisa horrível!" E o choro não deixava Connie falar, e o mesmo acontecia com M. Braga. Achei que se tratava de um acidente de automóvel e pensei nos meus amigos de Petrópolis. Pensei em todos, menos neles. Porque eles levavam a vida mais calma do mundo, e a mais doce na aparência, e a mais linda de se ver.
Eu tinha tanto medo de saber, meu amigo, tinha tanto temor, que não queria perguntar. Connie subiu chorando como uma criança. Nós três aqui sentíamos mais do que simplesmente carinho, sentíamos ternura por esse homem simples como uma criança, tão terno na amizade que não sei como descrevê-lo, e era realmente adorável. Você sabe que nós nos víamos com muita frequência. Ai!
Só agora percebo que muito menos do que seria necessário para conhecer-lhes o segredo e poder ajudá-los, se fosse possível ajudá-los, meu Deus!
Viajamos para Petrópolis com uma sensação de sonâmbulos que fazem coisas absurdas: não podíamos aceitar que estavam mortos, e menos ainda que tivessem cometido suicídio. A pequena casa de colunas, no meio da colina, cuja porta sempre nos esperava subir lentamente as escadas, estava guardada pela polícia. Lá em cima encontramos o doutor De Souza e sua boa mulher, o presidente da Academia de Petrópolis, um grupo de judeus, o editor brasileiro de Zweig e os mais conhecidos representantes da imprensa nacional e estrangeira.
Nós continuávamos falando e ouvindo tudo isso como se fôssemos sonâmbulos. Finalmente entrei no quarto e lá fiquei não sei quanto tempo sem levantar a cabeça. Eu não podia nem queria ver. Em duas camas de solteiro juntas estavam o mestre, com sua bela cabeça alterada apenas pela palidez. A morte violenta não lhe deixou nenhum sinal de violência.
Dormia sem o seu eterno sorriso, mas com uma grande doçura e uma serenidade maior ainda. Parece que ele morreu antes dela. Sua mulher, que deve ter visto sua morte, protegia a cabeça dele com seu braço direito e seu rosto estava exatamente em cima do rosto dele. Ao ser separada do corpo do mestre, ela ficou com o braço e a mão retorcidos e rígidos, que terão de ser recolocados no lugar quando seu corpo for depositado no ataúde. O rosto dela estava muito parecido com o rosto dele. Não tem nada que apague de minha mente essa imagem.
Ele tinha 61; ela, 33. Ele sempre dizia: "Em anos, sou mais velho que seu pai." Ela soube acompanhá-lo, deixando para trás uma vida inteira.
Pensei durante muito tempo no seu gesto e no prodigioso enfraquecimento do veneno ou da angústia da última hora: quando o viu morto ao seu lado.
Mantenho toda a minha concepção cristã sobre o suicídio, meu amigo, mas acredito que essa crença não me proíbe de sentir a dor profunda do amor dessa mulher por um homem velho que amou com paixão e amizade.
Ela cuidava dele com tal zelo, que não o abandonava nem por dez minutos: do ar frio, do muito escrever, do muito andar --que era seu único vício-- do desalento: de tudo ela o protegia. Em meu país eu teria rogado para que fossem sepultados juntos, como os Berthelot. Zweig dormia já sem sonhos, aliviado para sempre do tempo e do mundo vergonhoso que lhe coube viver na velhice.
Minha surpresa e a de todos que compartilhávamos de sua amizade é imensa. Hoje posso apenas lhe contar sobre o nosso penúltimo encontro. Ele nos convidou para almoçar, junto com Hortensia Rio Branco, que estava em sua casa. Achei que estava um pouco abatido, mas de ânimo mais alegre que de costume. Informei-lhe sobre a vinda de Waldo Frank, anunciada em sua carta, e comentei sobre a minha proposta para que ele viesse para uma casa em Petrópolis, para fugir do calor. Então ambos [Stefan e Lotte] me responderam que compartilharíamos a visita de Frank, que poderia passar uns dias com eles e outros comigo. E assim ficamos combinados.
Contou sorridente que havia preparado um almoço austríaco completo, desde a sopa até a sobremesa. E ele o serviu com seu jeito lindo de ser, que nunca se sabia se era de uma pessoa muito velha ou de uma criança. Falou um pouco da Bélgica com doña Hortensia, que há muito residia naquele país. Depois do almoço fomos para a varanda, onde ele gostava de trabalhar, mas Stefan me deteve ao passar por sua mesa de trabalho, para ler uma linda carta de Martin du Gard, o novelista.
Lia e repetia frases e mais frases, fazendo-me sentir o perfeito, o belo estado de espírito dessa outra alma que sofria. Saímos para a varanda falando das pessoas que estavam vivendo sua tragédia particular sem perder um pingo de decoro e de elegância em sua conduta.
Então, ele me disse, olhando-me de uma forma especial e destacando bem as palavras: "É preciso que se faça um alerta sobre o perigo de se começar na América uma perseguição aos alemães; sei que há alguns sinais disso, o que me deixa muito alarmado." E eu o tranquilizei assegurando que não haveria, por parte dos nossos povos, inquisição, nem coisa parecida às orgias sangrentas da Europa.
E começamos uma longa conversa sobre o índio, o negro e o povo mestiço. Ouvi dele um elogio comovido reconhecendo os méritos dos missionários portugueses. Eu já havia tentado, antes dessa conversa, aguçar seu interesse pelos missionários do continente sul-americano como tema para um livro dele, e que isso poderia ajudar muito os nossos índios. Ele exaltou a bondade do negro, "que se identifica perfeitamente", disse ele, "com sua alegria".
Acrescentou belíssimas observações sobre o temperamento brasileiro, na piedade e no equilíbrio emocional. Depois de elogiar o povo, passou a elogiar a terra, e insistiu para caminharmos juntos pelos arredores de nossa cidade, e eu prometi fazê-lo. Ele achava que eu entendia muito de plantas, só porque me viu cultivar uma parte do jardim de minha casa. "Gabriela Mistral", me disse ele, "eu tenho um pedido que você precisa me conceder. Conversaremos melhor sobre isso caminhando pelo campo."
Faz uns dez dias que tudo isso aconteceu: tento recordar com mais detalhe a parte referente a Frank e a última parte, porque são dois compromissos assumidos por ele de livre e espontânea vontade. Tenho certeza que ele não estava me enganando --por que o faria?-- e de que não tinha ainda a intenção de se suicidar.
Pouco depois me telefonou para perguntar se eu iria a uma recepção oficial da Prefeitura (ou Gobernacíon) de Petrópolis, porque ele recebeu um convite, mas não tinha com quem ir. E lá fomos, e ele ficou à vontade, apesar de não apreciar muito a vida mundana.
Não acredito nessas conjeturas que alguns fazem sobre a situação econômica do mestre Zweig. Seu editor as desmentiu categoricamente ontem à noite, a dois passos do falecido. As grandes edições de suas obras lançadas pela maior editora ianque, mais alguns artigos solicitados por publicações norte-americanas, podiam garantir-lhe pelo menos alguns anos de um bem-estar modesto, mas suficiente.
Por outro lado, não se pode nem imaginar que tenha passado por um momento de desvario ou loucura: escritor mais sensato, mais senhor de sua alma, menos delirante (apesar de ter descrito o delírio como ninguém), talvez não se possa encontrar em nossa geração.
Eu penso, sem pretensão de adivinhar tudo, que as últimas notícias da guerra o deprimiram terrivelmente e, em especial, o começo da guerra no Caribe, o afundamento de navios sul-americanos. Ah! Ele já havia visto acontecer coisas demais com a guerra! Podemos acrescentar a última informação que recebeu: a dos acontecimentos no Uruguai.
Também isso se parecia muito com o que ele já havia visto acontecer na Europa, embora admiti-lo possa doer. Estava farto do horror, já não podia aguentar mais.
Meu amigo: sei o que as pessoas superficiais dirão para condená-lo --e até alguns estoicos--, que Zweig tinha uma dívida conosco, e que sua fuga da tragédia a que estamos submetidos foi uma grande fraqueza. E dirão muito mais. Lembrarão que ele não acreditava no sobrenatural e lembrarão talvez da famosa covardia israelita.
Eu prefiro aguardar sua autobiografia, escrita aqui mesmo na nossa Petrópolis, que ele amava tanto quanto eu. Porque não podemos nem imaginar o que esse homem vinha padecendo há uns sete anos, desde que o escritor alemão fiel à liberdade passou a ser um animal de caça. Sua sensibilidade superava a que ele mostrava em seus livros: era uma sensibilidade feminina no melhor sentido da palavra; poderíamos dizer "inefável".
Quando falávamos da guerra, eu observava em seu rosto, com todos os detalhes, seu coração em carne viva e ia medindo o que eu podia dizer, coisa que nunca me aconteceu antes com nenhum homem de letras.
E o problema não era que ele pudesse perder em algum momento seu rigoroso controle; era que os acontecimentos brutais, ou simplesmente penosos, não pareciam ser ouvidos, mas sentidos por ele no mesmo instante em que os escutava, se estampando em seu rosto uma tristeza sem limites que o envelhecia de imediato. (Você se lembra de seu aspecto juvenil; tudo isso desaparecia quando o assunto guerra entrava na conversação.)
Sua repugnância pela violência não era apenas verdadeira; era absoluta.
Ele se interessava por todos os povos e se havia apegado muitíssimo aos nossos. Esteve a ponto de mudar-se para o Chile, respondendo a um convite de Agustín Edwards; mas permaneceu no Brasil, país que homenageou com um livro exemplar sobre seu território, história e povo. Achou os Estados Unidos muito ásperos ou duros, não sei. Preferia o sul porque, afinal de contas, um homem de 60 anos precisa de um clima de muita doçura.
Sua melancolia mais visível era a perda da língua materna. Em sua primeira visita a esta casa ele me disse que nada no mundo poderia consolá-lo de não voltar a ouvir ao seu redor a língua de sua infância. "Esta", disse ele, "é a única perda irremediável."
Ele, naquele momento, esperava, com absoluta certeza, a derrota do hitlerismo; mas havia comprado uma casa na Inglaterra e, possivelmente, como muitos desterrados, acreditava que ao regressar carregaria com ele as feridas provocadas pelo ditador, além das feridas provocadas pelos pseudoamigos que traem ou consentem.
Seu equilíbrio para julgar a própria pátria pareceu-me completo; jamais proferiu uma injúria, nem mesmo uma palavra mais dura, sua contenção verbal fazia parte de sua fidalguia. (O seu tipo de nariz não era judeu; lembrava mais o do espanhol, inglês ou francês.)
Não conseguimos fazer nada por ele, além do fato de que nós três, nesta casa, o amávamos, porque era a coisa mais natural do mundo ter por ele não só admiração, mas também uma ternura profunda.
Ah! Que os religiosos não removam esses ossos de quem já fugiu duas vezes e que renunciem à tentação do julgamento superficial de um morto que deixa empobrecida toda a humanidade, e certamente os melhores. Nele havia o mel de Isaías, também a chama de São Paulo, e a ambrosia de Ruth.
Adeus. G. M.